sábado, 20 de abril de 2019

Assim Será O Amor No Fim do Mundo (Capítulo Cinco)

Capítulo Cinco – FINAL




DESERTO. TUDO NÃO PASSAVA DE UM GRANDE DESERTO. A terra, que outrora fora morada das mais variadas pessoas – desde crianças e adolescentes até adultos e velhos carcomidos –, agora não era nada mais que um deserto sem fim. Nenhum prédio, nenhuma casa, nenhum automóvel; nada de calçadas ou ruas asfaltadas.

Não existiam mais empregados, tampouco patrões; não existiam padeiros, tampouco comedores de pão; não existiam mais guardas, tampouco ladrões; nem existia mais dinheiro, tampouco lugar para se gastar.


E les po dem     nos ou vir?
E les po dem    nos ou vir?
E les po dem   nos ou vir?
Eles po dem  nos ouvir?
Eles podem nos ouvir?


Aqueles sussurros!

Não havia mais religiosos, porque também não havia mais religião; nenhum sino retumbante a badalar nas igrejas, tampouco fiéis para rezar; não existiam mais alunos, porque não existiam mais professores e nada mais havia para ser ensinado naqueles últimos dias.


Fique ca  lado!    Es ta mos com pro     blemas.
Fique ca  lado!   Es ta mos com pro    blemas.
Fique ca lado!   Esta mos com pro   blemas.
Fique ca lado!  Estamos com pro  blemas.
Fique calado! Estamos com problemas.


Os sussurros outra vez.

Não existiam mais comandantes, tampouco soldados nos quartéis para marchar; consequentemente não existiam mais inimigos e nem guerras; não existiam mais pacientes, nem médicos e nenhuma doença mais para curar.


Eles es  tão estão per per dendo o contro le.
Eles estão estão per perdendo o controle.
Eles estãoestão perperdendo o controle.
Eles esestão  perperdendo o controle.
Eles estão perdendo o controle.


De onde viriam aqueles sussurros?

Deserto, um lugar inóspito. 

Flávio e Fernanda estavam jogados sobre o chão empoeirado, haviam sido vencidos pelos últimos dias. O fim do mundo havia lhes abatido de todas as formas, tanto física quanto psicologicamente. 

Fome, sede, dor, gritos, lágrimas. Sangue escorrendo das orelhas de Flávio que haviam sido arrancadas pela namorada; sangue escorrendo dos dedos do pé de Fernanda, abocanhados todos pelo namorado. Haveria prova de amor maior do que a de doar o seu próprio corpo para saciar a suprema fome do outro?  Existia amor no fim do mundo? 

Deserto, lugar de provação, de teste, de tentações.


Caídos e vencidos, os dois namorados avistaram, ao longe, uma sombra minúscula a se movimentar, vindo na direção deles. Seria uma miragem àquela altura? A sombra aumentava quanto mais se aproximava. Vinha vagando, quase se arrastando. 

De repente, um estrondo quase ensurdecedor ecoou pelo ar, semelhante a trovão. Os dois namorados, que mais pareciam duas bestas feras estendidas ao chão, ainda que debilitados por terem se canibalizado, conseguiram se espantar com aquele som estranho. De onde viera tal barulho? 

Logo em seguida, nos quatro cantos do deserto, soou uma trombeta colossal, parecendo anunciar algo. O velho já se encontrava diante das duas únicas pessoas que pareciam ter sobrado no fim do mundo.  Ele trajava um roupão todo negro mostrando apenas seu velho rosto sujo e barbudo, uma barba tão longa que chegava a tocar sua cintura. Suas mãos limpas saíram de dentro do seu manto negro. Nesse mesmo instante, o céu, que antes era cinzento, ficou agora surpreendentemente avermelhado. Labaredas flamejantes lambiam como línguas de fogo todo aquele céu que um dia já fora azul e ensolarado. Logo apareceu uma gigante abertura no firmamento. Num lampejo abrupto, um feixe de luz amarela tocou as mãos abertas do velho barbudo fazendo surgir um grande livro negro celestial, num ato solene de recebimento. Um supremo sopro, então, fez com que as folhas daquele livro se virassem feito redemoinho no meio do deserto. Até que, após alguns segundos, a ventania cessou deixando o livro perfeitamente aberto numa página dourada cintilante. O velho, naquele manto negro, abriu a boca escondida no meio daquela enorme barba para ler com voz de trovão o que ali estava escrito:


 “Nesse tempo muitos serão escandalizados e trair-se-ão uns aos outros, e aos outros se odiarão. E surgirão muitos falsos profetas, que enganarão a muitos. E, por se multiplicar, o amor de muitos se esfriará.”



Por fim, o sujeito barbudo e desconhecido fechou o livro e anunciou:

– Somente é capaz de amar aquele que puder contar o infinito nos dedos. Decifra-me ou eu te devoro!

Fernanda e Flávio ficaram perplexos. Até que um sussurro no meio do nada bradou:

– Podem desligar as máquinas!

O velho abriu a boca e inexplicavelmente ela cresceu tanto que conseguiu arrastar para dentro de si toda a  realidade, tudo o que restara do mundo. A boca se tornou monstruosa e infinita e engoliu impiedosamente Fernanda, Flávio e todo o universo. Tudo escureceu. Perderam a consciência dentro daquele agora estonteante buraco negro.




***



Acordaram um pouco atordoados, numa cama de aço localizada no meio de uma sala metálica, bastante refrigerada, mas totalmente desconhecida. No meio do teto, uma lâmpada enorme clareava com alguma dificuldade o recinto. Ao redor deles havia uma multidão de pessoas com máscaras cirúrgicas negras e batas da mesma cor, parecendo enfermeiros, analisando atentamente o casal acordar aos poucos.

Flávio ficou impressionado quando, passando as mãos pelo corpo, constatou que estava intacto, sem ferida alguma, com as orelhas no mesmo lugar de sempre. Virou para Fernanda e percebeu que ela também estava intocável, totalmente ilesa. De fato, não havia sequer rastro algum de sangue nos dois. Porém, com mais atenção, Flávio percebeu que havia algo muito esquisito na sua namorada: em sua cabeça estavam conectados dois cabos espessos de aço reluzente, um de cada lado. Fernanda reparou o susto do namorado. Passou com certa pressa as mãos pela cabeça. Olhou para a cabeça de Flávio e isso foi o bastante para que ele entendesse que também tinha cabos de aço conectados em seu crânio.


– Peço que não fiquem assustadas, doces crianças – disse alguém com voz muito grave surgindo da multidão. Flávio reconheceu no mesmo instante: era o mesmo tom de voz de um dos sussurros que eles ouviam. Um homem alto e careca, cheio de rugas, com óculos escuros escondendo os olhos, metido num roupão todo negro que batia nas suas botas de couro, surgiu do meio da multidão: – Tudo tem o seu tempo certo. – Aquele homem era o dono da voz.

– Eu explico ou você explica? – quis saber outro sujeito que abria caminho no meio daquele emaranhado de pessoas. Era um homem muito gordo, cabeludo, vestido também num roupão negro e de óculos escuros na cara.

Flávio berrou:

– Eram vocês! Com certeza eram vocês que sussurravam no meio do deserto!

Nessa altura, Fernanda já estava desesperada:

– Que merda toda é essa? Um grande teatro pra todo mundo rir da gente?

– Sobre as vozes que vocês ouviram quando estavam na simulação, foram falhas em nossa máquina – esclareceu o sujeito gordo, ajeitando seu cabelo longo e ondulado que batia na cintura. – Estamos nos esforçando para aperfeiçoar cada vez mais nosso sistema. Pedimos perdão.

– Você disse “simulação”? – interrogou Fernanda de maneira cortante, com os olhos arregalados de surpresa.

– Há algum tempo atrás, mais precisamente dois anos, vocês entraram em contato conosco para solicitar nossos serviços. Concordaram com nosso método e apenas cumprimos nosso papel.

– Serviços? Método? Como assim, que tipo de “papel” vocês cumpriram?

– Somos a Simulation Corporation. Trabalhamos com a criação de realidades ilusórias, mas tudo, claro, por um nobre motivo: pôr a prova um relacionamento recente. Fazemos isso a mais ou menos dez anos. Digamos que nosso trabalho é bastante sigiloso. O governo não sabe de nada e é preferível que nunca saiba. Atuamos na clandestinidade.

– Basicamente o que ele quis dizer é que simulamos uma situação totalmente absurda, de acordo com a realidade ilusória que nossos clientes pedem – complementou o sujeito cabeludo de proporções largas, entregando nas mãos de Flávio um documento em que constava a assinatura do casal no fim do papel. – No caso de vocês, senhor Flávio e senhora Fernanda, vieram a nosso encontro numa sexta-feira ensolarada, radiantes de amor, nos informando que haviam sido amigos e que essa doce amizade evoluiu para algo mais forte, uma “intensa paixão”, como assim denominaram. Queriam muito saber se esse sentimento resistiria aos anos de convivência. Nos pagaram relativamente bem pedindo que simulássemos uma realidade onde o mundo estivesse devastado. E como podem observar – apontou para o documento –, autorizaram formalmente todo nosso procedimento. É natural que vocês não lembrem – continuou – porque sempre usamos o amnetídoto, uma substância química que serve para apagar da memória qualquer informação sobre nossa corporação. Apenas esperamos o tempo certo chegar para trabalhar. Com uma chave mestra, entramos na casa de nossos clientes. Deixamos vocês em estado de sono induzido por cinco horas, tempo suficiente para que pudéssemos trazer em segurança seus corpos até nossa sala de simulação.

– Que troço é esse nas nossas cabeças? – questionou Flávio incomodado.

– Esses cabos são o que chamamos de tentáculos virtuais entorpecentes. Eles mantêm o cérebro em estado de inconsciência, abrindo espaço para que possamos criar a realidade simulada em suas mentalidades.

– E qual realidade simulada nós escolhemos? – quis saber Flávio.

– A categoria “fim do mundo”. O amor no fim do mundo.



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– FIM DA MINISSÉRIE –
Texto e Arte: Matheus Caio Queiroz
Obrigado a todos que chegaram até aqui! Sintam-se abraçados!
Dedico essa história a um mestre da ficção científica, um filósofo da literatura:
Philip K. Dick.



sábado, 13 de abril de 2019

Assim Será O Amor No Fim do Mundo (Capítulo Quatro)



Capítulo Quatro






MUITO ESTRANHO: DE ONDE VIRIAM AQUELES SUSSURROS? Vozes quase incompreensíveis, ditas pausadamente, com interferências cortando palavra por palavra, repetindo outras. Tudo muito estranho. Mas, aliás, o que havia de normal naqueles dias? Tudo perdera o sentido desde aquela manhã, aquela inesquecível manhã, que a princípio parecera uma manhã como todas as outras, um dia como todos os outros.

– Flávio, só eu que tô ouvindo?

– As vozes? Não. Não é só você.

Isso tinha também perto de casa, lembra? Aconteceu quando a gente tava na frente de casa! – Ela estava visivelmente confusa.

– São vozes humanas.... um pouco difíceis de serem entendidas, mas são vozes humanas.

– Quando a gente tava perto de casa – recordou Fernanda – parecia mais de uma pessoa falando. Tipo uma conversa. Não consegui entender muito bem. Pareciam dialogar...

– Você lembra se falavam a nossa língua? – indagou incisivo Flávio.

– Acho que falavam sim... – Fez esforço para buscar na memória afetada pela tensão do momento. – Não consigo lembrar com clareza.

– Mas – inquiriu mais uma vez o rapaz – de onde estavam vindo essas vozes se não tinha ninguém perto da gente?

– Acho que... – Fernanda passou a mão na testa com certo pesar, pensativa, retirando o suor que brotava devido aquela tarde de sol escaldante. De repente, num gesto brusco, começou a remexer pelos bolsos de sua calça jeans surrada pelos dias no fim do mundo desértico.

– O que você tá procurando? – perguntou Flávio apreensivo.  

– Cadê essa droga? – disse a namorada em tom de angústia, como quem perde um diamante muito precioso.

– Fê... – chamou Flávio tentando entender a afobação da garota. Soava estranho chamá-la assim, pelo apelido carinhoso e íntimo, no meio de toda aquela situação adversa e indesejada que os dois viviam. – O que você tá procurando?

– Tô procurando... – Batia com as mãos pelas pernas da sua calça azul, vasculhando cada detalhe, e não terminava a frase.

– Fernanda... – Flávio chamava já impaciente, porque percebia que ela estava fora da realidade, centrada em procurar de forma obsessiva por sabe lá o que, desesperada. – Calma, Fernanda, me diz o que você quer... talvez eu possa te ajudar...   

– Tô procurando pelo meu celular, Flávio, o meu celular, cara! Será que... Será que essas vozes vêm do celular? Alguém que também sobrou no meio de toda essa desgraça!

Nada. Nenhum celular em bolso algum. Não viera do celular. Simplesmente pareciam mesmo vozes que brotavam no ar, no meio do nada. Nada mais fazia sentido já fazia bastante tempo. Inclusive aquelas vozes. Sons humanos emitidos aos ventos. Mas por quem? A lógica é coerente: causa e efeito. Todo efeito é gerado por uma causa; toda causa antecede um efeito. Fernanda e Flávio não conseguiam entender como a lógica era incompatível com aquele novo estado em que o mundo se encontrava. O fim do mundo. Um mundo devastado e que escapava a toda forma de compreendê-lo. Mundo sem sentido. Quase inabitável. Se não fosse por eles, claro, vagando como duas almas penadas e infortunadas, tentando sobreviver. Mas como sobreviver? Como sobreviver sem compreender? Como se adaptar e conseguir passar por tudo aquilo de forma ilesa? Durariam quanto tempo ainda?

– Não aguento mais. – Fernanda não conseguiu mais se sustentar em pé e caiu.

Flávio se rendeu junto da namorada. Os dois estendidos ao chão, derrotados.

A tarde já havia morrido na imensidão empoeirada do planeta terra. O firmamento estava avermelhado como que do sangue de um céu que partejava uma noite sublime, uma noite infinitamente abrilhantada por estrelas fixadas em cada centímetro de céu, tudo ao som dos ventos melódicos de um silêncio quase fúnebre, um silêncio de luto, não por aqueles que se foram daqui para algum outro lugar desconhecido a olhos humanos, sem sequer darem notícia, mas sim pelos dois minúsculos seres que mais pareciam gotas no meio de todo o mar de areia, dois seres humanos que agora se arrastavam noite adentro, deserto afora, mendigando por uma explicação que fizesse sentido e que acalantasse serenamente suas almas derrotadas pelo infortúnio de um destino irreversível.


***

Na manhã seguinte, gritos estridentes tomaram conta dos quatro cantos daquele deserto empoeirado que o planeta terra havia se transformado. Gritos que brotavam da dor mais profunda e indescritível que já poderia ter existido. A dor da carne e a dor da alma. Flávio e Fernanda, impulsionados irrefletidamente pelos golpes desfigurados em seus estômagos pelo vazio agudo da fome que os massacrava sem misericórdia, se lambiam, se mordiam, se abocanhavam um ao outro. Retiravam-se lascas de pele, decepavam cabeças de dedos, mastigavam orelhas e bebiam o sangue do outro. As necessidades básicas fizeram com que os dois seres – considerados seres racionais por ciências e filosofias – reduzissem suas personalidades a um ínfimo nível de meros animais famintos e dispostos a cometer a desumanidade que fosse para se manterem vivos, a vida pulsando no peito cheio de desespero. Era a prova de amor no fim do mundo?



SÁBADO QUE VEM, AQUI NO BLOG, O ÚLTIMO CAPÍTULO DA MINISSÉRIE.
NÃO PERCA!

sábado, 6 de abril de 2019

Assim Será O Amor No Fim do Mundo (Capítulo Três)


Capítulo Três






             JÁ FAZIA DOIS DIAS QUE ESTAVAM BUSCANDO POR RESPOSTAS. Fernanda e Flávio tinham deixado o carro para trás. A gasolina não conseguira acompanhar a ânsia de saber o que estava acontecendo com o mundo. Andavam e andavam. Só andavam.  O caminho não apresentava nenhuma novidade. Parecia que estavam dando voltas e mais voltas em torno do mesmo lugar. Tudo era igual.

– Alguém pode me explicar o que tá acontecendo? – gritou Flávio em desespero. – Se isso for uma brincadeira, já conseguiram o que queriam, estamos assustados! – Ele falava como se alguém mais, além de Fernanda, estivesse ouvindo.

Fernanda caiu de joelhos na terra empoeirada. Flávio correu para perto da namorada, segurando sua mão:

– Acho melhor voltarmos pra casa, amor.

– Voltar? – perguntou Fernanda com uma cara transtornada. – Voltar como? Não temos mais gasolina!

– Podemos... podemos voltar a pé! – Flávio falava como se quisesse convencer a si mesmo de que ainda houvesse uma solução para tudo o que estavam vivendo. – Vamos tentar! – Mas sabia que não havia.

Fernanda se levantou num movimento brusco, agarrou a gola da camisa social cheia de botão do namorado, sacudiu seu corpo com uma força que só conseguiu encontrar na raiva de ter que ver Flávio falando aquelas besteiras. Impossível conseguir voltar andando naquelas condições. Fome e sede já começavam a dar fortes sinais no corpo. Estavam visivelmente sem apetite, toda aquela loucura pela qual estavam passando fazia qualquer sujeito perder o tesão por mantimentos. Mas o corpo já começava a padecer por causa das necessidades biológicas por energia.

– Você é um idiota! – disse a moça soltando num empurrão a gola da camisa do namorado. – Não sabe decidir nada, não sabe tomar decisões, nunca soube, muito menos sob pressão!

Flávio caiu ao chão com os olhos fixos, assustados, na namorada. Ela nunca agira daquele jeito. Aquilo assustava o rapaz que sempre a considerou pacata e moderada com as palavras.

– Se... – balbuciou Flávio, perplexo – Se por um lado... eu não sei tomar decisões sob pressão... – Passou a mão na testa, enxugando o suor. – Você, sob pressão, costuma falar o que pensa... Não sabia desse seu lado. Eu sou um inútil pra você, é isso mesmo?

– Não foi isso que eu disse, Flávio.

– Foi praticamente isso.

– Eu te chamei de idi... idi... – Ela não conseguia pronunciar novamente aquele xingamento.

Flávio ficou num impasse. Deveria relevar as palavras duras da namorada. O momento não era dos melhores para  discutirem, estavam de cabeça quente.

– Eu sei que estamos numa situação foda, Fê, mas perder a cabeça nesse momento não vai ajudar a gente.

– Desculpe.. Eu apenas...  – As lágrimas foram inevitáveis. – Não sei o que fazer.

“E    les   eles eles   es    tão  es    tão   es   tão es   tão  per   per   per   dendo o contro le”. Aquele sussurro outra vez.

Os dois se entreolharam. Já tinham ouvido algo semelhante perto de casa. Quem dissera aquilo? De onde viera aquela voz?


                   (Continua no próximo sábado, aqui no Blog Eu Vomitando)

sexta-feira, 29 de março de 2019

Assim Será O Amor No Fim do Mundo (Capítulo Dois)


Capítulo Dois







FLÁVIO EXCLAMOU BESTIFICADO:


– A-ca-ba-ram com o mun-do! – disse com as mãos na cabeça, sem entender tal situação.


O rapaz, sem pensar duas vezes, saiu da casa para enxergar melhor o mundo, seguido pela namorada em estado de confusão. Juntos, constataram que o planeta terra havia sido desgraçadamente varrido. Até onde a vista pudesse alcançar, tudo não passava de um grande nada, um deserto inabitável. Parecia que uma gigantesca vassoura dos deuses havia varrido tudo e a todos, menos o casal. Fernanda chegou a correr para trás da casa onde moravam, depois correu para o lado e nada. Aquele mesmo cenário imperava por todos os cantos. O céu parecia uma fotografia antiga, meio preto e branco. Se ao menos tivessem destroços por todos os lados, carros destruídos, prédios derrubados, o casal de namorados poderia até encontrar rastros do que deveria ter acontecido. Mas nem isso. O mundo naquele momento não passava de um oceano desértico, acinzentado e recoberto por poeira.

– Flávio, o que fizeram com o mundo? – perguntou Fernanda atordoada. – Cadê todas as coisas que sempre estavam aqui, os carros, as casas, os nossos vizinhos?


A lógica perdeu espaço diante do planeta terra vazio de vida e cheio de um nada acinzentado. Que teoria filosófica ou científica explicaria aquilo?


Flávio, num arrepio de esperança, até chegou a fechar bem os olhos torcendo para que tudo não passasse de um sonho. Abriu novamente os olhos. Não era um sonho. Ou melhor, era.  Era um pesadelo, mas real, vivo, intenso, gritante, cortante e duramente angustiante.


Quem poderia explicar por que o mundo estava daquele jeito? Onde se encontravam, agora, os profetas, aqueles que gritavam a plenos pulmões por todas as ruas da cidade que o fim do mundo estava próximo? “Irmãos, o fim se aproxima!”, eles sentenciavam histericamente. Onde estavam os anunciadores dos novos tempos, dos últimos tempos, dos piores tempos para todos aqueles que não se convertessem à verdade sagrada, absoluta e dogmática? Deus, então, viera buscar seu povo escolhido? Sobrara apenas o casal jovem de namorados. Viria o deus buscá-los na próxima viagem? Será mesmo que todos – todos! – foram salvos, menos o casal de namorados? E olha que não fora nem uma nem duas vezes que as Testemunhas de Jeová haviam lhe convidado para visitarem a sua igreja. Por que não aceitaram? Ao menos estariam salvos naquele instante. Mas os dois sempre foram éticos demais para acreditarem em algo só para não serem mandados ao inferno ou só para terem as almas salvas no paraíso.


Ou então deveria ter sido uma invasão alienígena. Uma visitinha básica dos amigos de outros planetas. Raptaram a humanidade com o objetivo de fazer testes e mais testes e mais testes. Deixaram tudo bagunçado, afinal os seres humanos não queriam cooperar. Se não foram por bem, com certeza, levando em consideração a situação atual do planeta, foram levados por mal, contra as suas vontades.


– Flávio! – exclamou Fernanda.


Ele olhou para os olhos dela. Olhos de pavor.


– Me bate, Flávio!


– O que é isso, Fê? – disse colocando as mãos na cabeça, talvez com receio de perder o pouco da sanidade que ainda preservava.


– Me bate!


– Claro que não!


– Já disse, me bate!


– Claro que nã... – antes que terminasse a frase, levou um profundo tabefe na cara.


Daria para ouvir do outro lado da rua, se existisse rua e se houvesse algum ser humano ali por perto. Flávio se desequilibrou e caiu de joelhos no chão. Onde estava todo mundo para presenciar aquela cena desesperadora e meio patética dos dois? Ninguém. Ressoava somente a canção do silêncio cor de cinza.


Fernanda e Flávio levavam uma vida tranquila a dois. Viviam quase que independentemente do resto do mundo, não fosse o fato de trabalharem com pessoas. Talvez somente por isso é que ainda mantinham algum contato humano que não fosse entre eles próprios. Fernanda assistia, todos os dias, o desenrolar da política de seu país e, baseada nas teorias filosóficas e sociológicas que aprendera na faculdade de Ciências Sociais, trabalhava metodicamente durante a semana na escrita de artigos para serem publicados de quinze em quinze dias na revista “Pólis Pós-Moderna”; enquanto que seu namorado Flávio, todos os dias, caminhava metodicamente até a Escola Pública de Ensino Fundamental e Médio Monteiro Lobato, não muito longe da casa onde moravam, para dar aulas de inglês. A vida a dois, todos os dias, era metodicamente muito bem planejada, pautada sempre na lógica. Mas isso era antes. Hoje, toda aquela racionalidade havia caído por terra. Porque, simplesmente, não existia razão que pudesse explicar o estado em que o planeta terra se encontrava. O mundo perdera sua cor na noite anterior.


Flávio colocou a mão no lado do rosto que recebeu a bofetada. Rapidamente Fernanda abraçou o namorado no chão e implorou por perdão, afinal de contas, fizera aquilo de cabeça quente, sem pensar. Os dois se levantaram e Flávio guardou a namorada nos braços, num gesto direto de afago, dizendo:


– Eu sei, meu amor – disse o rapaz em tom de compreensão. – Eu sei que tudo está confuso na sua cabeça. Na minha também. Será que isso tudo é real? Na noite passada não ouvi nenhum barulho, nada que me fizesse suspeitar de que o mundo tinha virado de cabeça pra baixo.


– Eu dormi feito uma pedra, Flávio. Não entendo por que as coisas estão assim.


Nesse instante, Fernanda pensou rápido: para tentar desvendar todo aquele mistério surrealista, a garota correu de volta para dentro da casa e ligou a televisão pequena da sala.


“... Dessa forma, o presidente da república afirma que, do jeito que as coisas estão, o melhor a se fazer será implantar uma monarquia absolutista no país, onde ele próprio será, sem eleições, claro, o monarca maior a comandar essa nação...”, um dos canais abertos reproduzia uma notícia jornalística. Fernanda mudou para outro canal. “... Você aí de casa vai colocar três ovos, leite, um pouco de trigo com fermento, da mesma maneira que o nosso mestre cuca está fazendo...”. Mudou para outro... “... A geração passada precisa entender que a psicologia...”; depois para outro... “... queremos falar sobre...” e para outro e para outro e para outro.


– Flávio, entra, vem cá ver.


Nada, nenhuma notícia sobre o que estava fora de casa. Parecia que tinham se esquecido deles dois. A televisão estava com sua programação normal, ninguém falava nada sobre o mundo devastado. Muito estranho, no mínimo. A vida, além da deles dois, ainda existia, entretanto apenas dentro da TV. Parecia que o casal de namorados estava numa espécie de universo paralelo. Mas pensar isso seria absurdo, essas loucuras de teoria da conspiração formuladas por adolescentes espinhentos sem vida sexual ativa.


                  De repente, soou no ar:

                  "E les po dem          nos ou vir?".

             Flávio e Fernanda se entreolharam, tomados por um espanto. Que diabo era aquilo que tinham ouvido? 

                  "Fique ca    lado!         Es ta mos com pro          blemas".

O casal se assustou. Aquilo eram vozes, quase que sussurros. E não eram deles. Aquelas vozes estavam soando quase como um sopro naquele deserto que outrora fora uma cidade razoavelmente decente de se viver. De onde vinham aquelas vozes?

Num impulso, Flávio puxou Fernanda pelo braço, saindo da casa com a namorada, dizendo:


– Se ficarmos aqui dentro, não vamos entender o que realmente tá acontencendo lá fora! Vamos buscar respostas!


Foram correndo até a garagem da casa. Por sorte, o carro ainda estava lá, não sumira junto com o resto do mundo. A namorada voltou na cozinha da casa, onde tinham iniciado o dia com um ótimo café da manhã. Voltou para pegar as chaves do carro. Abriram rapidamente as portas, entraram. Somente Fernanda tinha carteira de motorista. Pisou no acelerador sem piedade, afinal não tinha ninguém mesmo que pudesse ser atropelado. Foram os dois buscar por alguma explicação no meio daquela planície infinita, acizentada e cheia de poeira.



(Continua no próximo sábado, aqui no Blog Eu Vomitando)

sexta-feira, 22 de março de 2019

Assim Será O Amor No Fim do Mundo (Capítulo Um)


Capítulo Um






FLÁVIO GERALMENTE ACORDAVA PRIMEIRO QUE SUA NAMORADA. Não era tão cedo. Devia ser umas sete da manhã. Levantava-se e, religiosamente, a primeira coisa que fazia era ir ao banheiro mijar. Como todos os dias, deixava pra tomar banho e escovar os dentes depois do café da manhã.

A vida a dois era boa. Flávio nunca entendeu por que algumas pessoas perdiam tempo com baladas, festas, se esfregando umas nas outras, enchendo a barriga de saliva – dos beijos que cheiravam a sexo explícito. Flávio tinha vinte e cinco anos. Não era velho, porém preferia o repouso e a serenidade do seu namoro com Fernanda a ter que gastar o seu suado dinheiro com bebidas alcoólicas que depois de poucos minutos iriam ser despejadas pela urina nas ruas ou em privadas fedorentas.

Os dois brigavam? Sim, claro, uma vez ou outra, mas nada que fosse motivo para separação. Aprenderam rápido que a vida dividida deve ter a razão como guia. Sabiam que as brigas nunca levavam a lugar algum, portanto, o mais viável, pela lógica, era evitá-las. Prezavam, digamos, pela “coerência conjugal”, como eles mesmos metodicamente falavam.

– Fê, o café já tá pronto – avisou Flávio chamando sua namorada, quase esposa, pelo apelido carinhoso que já usava há cinco anos de relacionamento.

Nos primeiros dois anos de namoro, Flávio morava com sua mãe solteira e Fernanda com o pai e a mãe casados. O casal jovem se conhecera num supermercado popular da cidade, numa situação nada agradável para Fernanda. A garota havia sido assaltada logo na saída das compras, estava desesperada, atordoada. Era a primeira vez que passava por uma situação daquelas. Flávio, que estava chegando minutos depois do ocorrido, percebeu a garota angustiada no estacionamento da saída do supermercado e resolvera, então, ajudar, acalmando-a e levando a jovem até a delegacia mais próxima para fazer o boletim de ocorrência. A partir daí, travaram uma amizade. Depois de meio ano, decididos, começaram a namorar.

– Caramba! – exclamou Fernanda surpresa, que acabara de entrar na cozinha. – Como você sabia que eu tava a fim de comer esse pãozinho maravilhoso que só você sabe fazer? – Deu um abraço bem forte e carinhoso no namorado que às vezes dava o ar da graça de ser um pouco romântico à moda antiga.

Tomaram café juntos, como todos os dias.

E, como todos os dias, Flávio saiu primeiro da mesa. Fernanda trabalhava todos os dias em casa, escrevendo para uma revista que publicava seus artigos sobre política de quinze em quize dias, enquanto que o namorado, professor de inglês, precisava se adiantar para não chegar atrasado ao seu trabalho de todos os dias. Então, correu para o banheiro, escovou rapidamente os dentes debaixo do banho frio daquela água que jorrava do chuveiro sem piedade, como todos os dias. Enxugou-se nas pressas, puxou a primeira calça que viu na frente, roubou do guarda-roupa a sua camisa preferida – que estampava descaradamente o nome e a imagem do seu filme predileto, Blade Runner: o caçador de andróides – e beijou sua namorada na boca antes de abrir a porta de casa para ganhar o vasto mundo, como todos os dias.

Abriu a porta. Mas, diferentemente de todos os dias, Flávio ficou paralisado diante do mundo que agora se apresentava para ele. Pasmado, com bastante dificuldade, gaguejando, conseguiu exclamar:

– A... am... amor... – de olhos arregalados, fez uma pausa dramática. – Acabaram com o mundo!

O planeta terra estava devastado. Não existiam mais casas, nem prédios, nem as poucas árvores; nenhum carro, nenhuma moto, nenhuma bicicleta, nenhum ônibus; calçadas e asfaltos não existiam mais. O chão estava em estado de pura terra batida. Era como se o mais surrealista dos pintores tivesse derramado de propósito pura tinta cinza em cima de todo aquele quadro. O mundo agora estava infinitamente cinzento e o chão recoberto por poeira. E não havia sequer uma alma viva para contar a eles o que acontecera na noite anterior.

 (Continua no próximo sábado, aqui no blog)