"Retirantes" (1944), pintura de Candido Portinari. |
Diante das parcas possibilidades de uma vida razoavelmente confortável, sem o mínimo para se viver como gente, o homem é possuído pelo arrepio dilacerante da falta de um sentido para a sua vida. Ele precisa acreditar em alguma coisa para se manter vivo, ainda que sua vida seja tão indigente quanto a de um animal abandonado.
Quando tudo ao seu redor é
caatinga que massacra, clima de inferno tropical, um seco sertão deserto;
quando a fome é uma inimiga cotidiana, ainda há possibilidades para sobreviver?
É a peleja do homem contra três vazios:
o de dentro, o de mais dentro ainda e o de fora, que são respectivamente o
vazio da barriga sem comida, o vazio da alma desesperançada e o vazio do espaço
em que se habita, em que se vive – sobrevive. Tão trágico quanto uma mãe que
não pode ter filho é uma terra que sofre de esterilidade, que tinha tudo para
ser e não foi.
Quando a terra não pode ouvir
nosso clamor que insiste que ela nos dê frutos e a barriga grita de fome, talvez
a única saída que nos resta é a crença. A crença enche nossa alma de esperança,
e a esperança é o combustível dos desgraçados.
O homem é bicho danado, teima em
viver mesmo que se arrastando de desgraça em desgraça pela face da terra. O
instinto não se cala. Quando a má sorte ameaça, a última maneira que encontra
de rebater os infortúnios do sertão, da falta de chuva e de comida, é enchendo
a barriga de crendices. Seu mais que último subterfúgio.
Essa epopéia da vida sertaneja
sem pompas pode ser bem ilustrada com um livro e dois filmes:
(1) Os Sertões, de 1902, do escritor Euclides da Cunha, retrata um povo incompreendido que busca na crença a sua salvação.
(1) Os Sertões, de 1902, do escritor Euclides da Cunha, retrata um povo incompreendido que busca na crença a sua salvação.
Primeira edição da obra. |
O próprio autor declara que seu objetivo em escrever tal livro
é registrar – livro-reportagem – as características dos sertanejos do Brasil, registrar
porque ele próprio não vislumbrava um confortável futuro para aquele povo
esquecido no universo:
“Intentamos esboçar palidamente embora, ante o olhar de futuros
historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do
Brasil. E fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexo de fatores múltiplos
e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável
situação metal em que jazem, as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo
desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização.” (São Paulo:
Abril Cultural, 1979, p. 7)
Se a civilização representava um
devastador inimigo, a saída que o povo da comunidade de Canudos, no interior da
Bahia, encontrou foi depositar toda sua crença em Antônio Conselheiro, um
místico líder religioso.
Desenho retratando o revolucionário Antônio Conselheiro. |
Os oprimidos sertanejos acreditavam que ele era o enviado divino encarregado da missão de libertar o povo das lamúrias do vazio da barriga, do vazio da alma e do vazio da terra.
Sertanejos aprisionados pelo Exército em Canudos, após a duradoura guerra. |
(2) No filme Vidas Secas, de 1963, de Nelson Pereira dos Santos (inspirado no livro de mesmo nome do escritor Graciliano Ramos), a primeira impressão que temos é de secura.
Cartaz original do filme. |
Temos
Fabiano (o pai), Sinha Vitória (a mãe), Baleia (a cachorrinha) e o menino mais
velho e o menino mais novo (filhos) como cinco almas penadas, cinco vidas
secas, vagando pelo sertão em busca de um lugar sob a sombra de alguma mísera
árvore.
Parecem mais bichos do que a sua cachorrinha Baleia, caminham cambaleando, trocando uns com os outros palavras que quase não são pronunciadas por suas bocas sedentas, parece que quase não sabem falar. Apenas sonham. E Sinha Vitória é talvez a mais sonhadora, sonha que um dia será gente quando enfim sua tão desejada cama de couro. As almas contaminadas pelo sol seguem em dura marcha o seu êxodo sertanejo acreditando numa vida menos seca.
(3) Em 1964, Ruy Guerra nos
presenteia com o filme Os Fuzis, filme esse que conta a história de um grupo de
soldados que são mandados ao sertão baiano com a missão de impedir que a
população esfomeada invada um armazém de um homem com comida suficiente para
todas as barrigas vazias.
Cartaz original do filme. |
Mais uma narrativa que retrata os três vazios: o vazio da barriga, o vazio da alma e o vazio da terra seca.
Ator Nelson Xavier interpretando um dos soldados que foram enviados ao sertão. |
Líder religioso que guia o seu povo na esperança que o boi faça milagres. |
A crença é uma forma de manter a cabeça ocupada para
que não se lembre das dores do corpo e da alma. O vazio nos leva a acreditar. E
acreditar é uma forma de se manter vivo. Destaco
uma fala do filme: “a gente tem fome e
tem fé, só fica faltando o milagre”.
Retomando a palavra com Euclides
da Cunha, na mesma página citada acima, ele ainda nos diz mais:
Autor do clássico "Os Sertões". |
“A civilização avançará nos sertões impelida
por essa implacável ‘força motriz da História’ (...) no esmagamento inevitável
das raças fracas pelas raças fortes.” (mesma página citada acima)
Esse sertão abordado pelo
presente texto é só uma metáfora. Qualquer lugar pode ser sertão. O sertão é o
espaço de enfrentamento das nossas mazelas. Um povo entregue às desgraças
sociais e políticas busca sempre desesperadamente por uma salvação. Porque
acreditar é uma forma de não morrer.