sexta-feira, 23 de outubro de 2015

O Espelho do Tempo Psicodélico de Alceu Valença




I



1970. Tenho minhas dúvidas sobre reencarnação, mas alguma coisa me diz que eu vivi na década de 70. Meu gosto musical é atraído para essa década de uma forma inexplicável. Para mim foi a época mais produtiva, mais fértil da história da música. Não, não estou me referindo apenas à Inglaterra ou aos Estados Unidos. Estou falando também do Brasil. 
O que estourou lá na segunda metade da década de 60 até o final da década de 70 que repercutiu aqui, propriamente na nossa década de setenta? O rock psicodélico e rock progressivo, com 



Cream


The Yardbirds


The Rolling Stones


                                    Janis Joplin             The Jimi Hendrix Experience                   


                 The Beatles                                                  The Doors


Led Zeppelin


Pink Floyd


Emerson, Lake & Palmer

e, perto do fim de 70, a Disco Music, com 




                                                                                       ABBA


                                                                                Donna Summer


The Jackson 5


James Brown


Michael Jackson

Esses sons invadiram a América do sul de uma forma estonteante. A década de 70 aqui no Brasil é cheia de bandas que chuparam a psicodelia britânica e se meteram a fazer rock progressivo da melhor qualidade, como


O Terço


A Barca do Sol


Bacamarte


Som Imaginário


Casa das Máquinas


Vímana


14 Bis

e também é cheia de grupos de disco music agitando as paradas sonoras das rádios e das discotecas, como


Tim Maia


Banda Black Rio


                                                                     As Frenéticas




A banda Os Mutantes, é um exemplo dessa mistura de influências, flertaram com a psicodelia, com o tropicalismo e com o rock progressivo. Em 1966, foram banda de apoio no programa artístico O Pequeno Mundo de Ronnie Von, na TV Record. Na época, eles se chamavam Os bruxos. 



Conta a história que o Pequeno Príncipe da Jovem Guarda, Ronnie Von, estava lendo um livro chamado O Império dos Mutantes, do autor Stefan Wul, e daí tirou o nome para a banda.



               Os Mutantes como banda de apoio no programa de televisão de Ronnie Von


Chegaram, inclusive, a participar do disco psicodélico de Ronnie VonRonnie Von nº 3, de 1967.





Depois gravaram com os tropicalistas o disco Tropicália ou Panis et Circences, de 1968, álbum manifesto do movimento tropicalista,



Mais tarde, quando lançam seu último álbum com Rita Lee, intitulado Mutantes e Seus Cometas no país dos Baurets, de 1973, entram de cabeça no rock progressivo.


Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets (1973)



O fato é que o som dissonante, não convencional e lisérgico da música de fora do Brasil influenciou o som dos nossos músicos, como


Gal Costa


Caetano Veloso e Gilberto Gil


Zé Ramalho


Raul Seixas


Os Mutantes


Ronnie Von


Os Doces Bárbaros


Secos & Molhados


Ave Sangria


Eles são exemplos nítidos dessa contracultura que estourava na Nova Ordem Mundial.
Considero Rock Psicodélico e Rock Progressivo filhos da contracultura que teve seu auge na década de 60, porque, se contracultura é a mentalidade dos que rejeitam e questionam valores e práticas da cultura dominante da qual fazem parte, esse tipo de som que começou a ser feito em terras tupiniquins era totalmente contra a cultura dominante.





II



Como prova de que o som ultrapassa a barreira do tempo e do espaço, lá em São Bento do Una, no interior de Pernambuco, nasceu um moço muito criativo no ano de 1946, um moço muito fértil, muito poeta, chamado Alceu Paiva Valença. Ele estava antenado ao que acontecia pelo mundo mesmo sem ainda existir a Internet.



Em 1977 lança um álbum que eu considero um álbum liquidificador. O que seria isso? Álbum liquidificador é aquele que mescla, que junta, que mistura diversos segmentos musicais, não só no disco todo, mas em cada música do disco todo. Esse disco é histórico, é o Brasil psicodélico, é como um nordestino vomitava a psicodelia e o baião que tanto já havia consumido. Esse álbum é o espelho do tempo psicodélico. Esse álbum se chama 


                                                                         Espelho Cristalino (1977)

O instrumental é transcendental, coisa de outro mundo, a mistura de guitarra e baião, frevo e poesia, que leva quem o ouve a outros mundos. As letras são bem poéticas e enigmáticas e abrem brechas para novas interpretações cada vez que se ouve. Simplesmente é um dos melhores álbuns da história da música, não só brasileira, mas, também, mundial. 

As faixas são:

01 Agalopado ---- (composição: Alceu Valença) (duração: 3:22)
02 Maria dos Santos ---- (composição: Don Tronxo, Alceu Valença) (duração: 3:57)
03 Anjo de Fogo ---- (composição: Alceu Valença) (duração: 3:26)
04 Veneno ---- (composição: Rodolfo Aureliano, Alceu Valença) (duração: 4:05)
05 Espelho Cristalino ---- (composição: Refrão do Folclore Alagoano, Alceu Valença) (duração: 4:00)
06 Eu sou Você ---- (composição: Alceu Valença) (duração: 3:31)
07 A Dança das Borboletas ---- (composição: Alceu Valença, Zé Ramalho) (duração: 2:59)
08 Sete Léguas ---- (composição: Alceu Valença) (duração: 4:22)

Cada uma delas tem uma particularidade inexplicável que leva quem ouve a um lugar muito subjetivo, muito pessoal do ouvinte. As letras são recheadas de metáforas, o que torna tudo muito mais rico de interpretações. E essas metáforas, bem como a musicalidade, são muito lisérgicas.


AGALOPADO

Quando eu canto o seu coração se abala
Pois eu sou porta-voz da incoerência
Desprezando seu gesto de clemência
Sei que meu pensamento lhe atrapalha
Cego o sol seu cavalo de batalha
E faço a lua brilhar no meio-dia
Tempestade eu transformo em calmaria
E dou um beijo no fio da navalha
Pra dançar e cair nas suas malhas
Gargalhando e sorrindo de agonia
Se acaso eu chorar não se espante
O meu riso e o meu choro não têm planos
Eu canto a dor, o amor, o desengano
E a tristeza infinita dos amantes
Don Quixote liberto de Cervantes
Descobri que os moinhos são reais
Entre feras, corujas e chacais
Viro pedra no meio do caminho
Viro rosa, vereda de espinhos 
Incendeio esses tempos glaciais


VENENO

Aprendi com a chuva
Você não quis me ensinar
Fiz toalha do sol também
Você não quis me enxugar
Eu fui jogado entre as feras
Olho por olho é a lei
Qualquer dia eu enfrento sua guerra
E minhas balas têm gosto de hortelã
Eu sou a terrível febre amarela
E o veneno da cobra e da maçã


ESPELHO CRISTALINO

essa rua sem céu, sem horizontes
foi um rio de águas cristalinas
serra verde molhada de neblina
olho d'agua sangrava numa fonte
meu anel cravejado de brilhantes
são os olhos do capitão corisco
e é a luz que incendeia meu ofício
nessa selva de aço e de antenas
beija-flor estou chorando suas penas derretidas na insensatez do asfalto

mas eu tenho meu espelho cristalino
que uma baiana me mandou de maceió
ele tem uma luz que alumia
ao meio-dia clareia a luz do sol

que me dá o veneno da coragem
pra girar nesse imenso carrossel
flutuar e ser gás paralisante
e saber que a cidade é de papel
ter a luz do passado e do presente
viajar pelas veredas do céu
pra colher três estrelas cintilantes 
e pregar nas abas do meu chapéu
vou clarear o negror do horizonte
é tão brilhante a pedra do meu anel

A DANÇA DAS BORBOLETAS

As borboletas estão voando
A dança louca das borboletas
As borboletas estão girando
Estão virando sua cabeça
As borboletas estão invadindo
Os apartamentos, cinemas e bares
Esgotos e rios e lagos e mares
Em um rodopio de arrepiar
Derrubam janelas e portas de vidro
Escadas rolantes e das chaminés
Mergulham e giram num véu de fumaça
E é como um arco-iris no centro do céu

Sou um admirador fanático da sonoridade nordestina, não só instrumental, mas da sonoridade do sotaque da região, acho muito agradável de ouvir a força como são entoadas as palavras. Tudo isso misturado num disco, toda essa cultura e contracultura condensadas num disco. Realmente esse disco espelha a psicodelia que fervilhava nos anos 70. 
Recomendo a audição!


segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Enquanto Eu Cagava


OLÁ. Meu nome é Salomão.
Fui cagar. Abri a porta do banheiro, tirei minha camisa, tirei o short e a cueca, retirei até os óculos. Eu cago como eu quiser. Eu cago à vontade, do jeito que meu corpo se sente mais confortável. Pra mim, cagar é um momento mais sobrenatural e mais importante que a Última Ceia.

Joguei minha bunda na privada e jorrei aquela merda! Caguei feliz como uma menino segurando o presente que tanto pediu ao Papai Noel, lacrimejando de emoção. Cagar não é melhor do que comer comida ou comer alguém. Mas, convenhamos, um cago é um cago! É como se você fosse ganhando, aos poucos, asas e saísse voando pela cidade, leve, livre e solto. Me sinto bem por conseguir cagar. Tem tanta gente que não sabe o que é cagar sozinho. Pelo menos isso ainda consigo fazer sozinho. Enquanto eu cagava, pensei naquele físico famoso, o tal do Stephen Hawking. Coitado! Como ele caga? Deve ser muito desconfortável pra ele ter que ser levado por alguém pra cagar. Deve ser muito constrangedor outras pessoas terem que saber que ele quer cagar pra ele poder conseguir cagar. Ele tem que avisar alguém: "Ei, quero cagar! Me leva pra privada!" Que falta de privacidade. Que chato isso. Levam ele pra cagar e ele nem pode mentir dizendo que só foi mijar. Falta de privacidade. Tão importante quanto sermos pessoas públicas, sem esconder nossas ações que precisam ser transparentes à sociedade , é ter privacidade pra cagar. Privacidade é importante. Privada também. E bota importante! A velha moral filosófica ensina: age de tal maneira que tua ação seja uma lei universal. Tudo bem, quero cagar em paz e com privacidade. Que essa ação privada que faço na privada seja efetivamente privada! E que isso seja lei para todo ser moral! Cagar não me faz menos ético que você. Cagar é da nossa natureza animal. Se nem eu, sujeito crescido e vivido, tenho poder sobre isso, imagine a Crítica da Razão Prática daquele tal de Kant, o filósofo alemão, nem meu psicólogo tem poder sobre isso, nem a Constituição Federal. E eu cago e escrevo sobre o que eu quiser, viu? Querem que eu escreva sobre o que agrada vocês? Não, não sou só mais um, apesar de ser um só. Mas prefiro ser um só a ser igual a todos. Cago nu e que se dane! Quem caga sou eu e, desde que isso não interfira na felicidade do meu próximo, eu cago como eu quiser.
Sabe o que vocês são? São cópia da cópia da cópia da cópia da cópia da cópia de uma matriz construída com o intuito de subjugar e obedecer a uma minoria. Até pra cagar vocês cagam iguais e burramente!
Você lê o que enquanto caga? Você ouve o que enquanto caga? Você cheira o que enquanto caga? Você come o que enquanto caga? O que você comeu pra cagar o que cagou? Nem só de pão viverá o homem. Mas todos estão muito ocupados pra pensar. Acho que a hora de cagar é a única hora que nos sobrou pra pensar, por isso que todos nós andamos pensando muita merda ultimamente.
Dei descarga.

A Voz das Mulheres em Chico Buarque

Já ouvi dizerem que o homem que conseguir entender uma mulher deve duvidar de seu sexo, como se entender uma mulher fosse uma proeza impossível para homens. Claro que achei um comentário bem infeliz. Mas tenho para mim que o caso é que o universo feminino é mesmo muito curioso por justamente ser misterioso, e não pela suposta impossibilidade de ser compreendido. A mulher é um ser fantástico, uma verdadeira poesia e seus gestos são como a legítima arte: polissêmicos! E, por falar em poesia, existe um carioca que tem como musa inspiradora em muitas de suas canções a figura da mulher, esse carioca, que tece poesias em torno do universo feminino, muitas vezes confundindo-se com suas personagens marcantes, se chama Chico Buarque de Hollanda, convenhamos: um grande artista!


Nesse breve texto, falaremos, sem querer esgotar o assunto, do aspecto artístico muito único do Chico que é o de se utilizar do eu lírico feminino nas suas músicas, mostrando, sem tirar o protagonismo feminista, que a mulher deve ter sim a liberdade de gritar seus sentimentos.



A história nos mostra que a mulher não tinha vez na nossa sociedade, que a mulher sempre foi vista como inferior ao homem. Esse é o tão vergonhoso machismo, enraizado na nossa cultura há seculos! Isso só começou a mudar, aos poucos, depois que a mulher começou a se impor, mostrando que a fêmea não deve ser submissa a macho nenhum, e com todo o direito e razão. Não foi da noite para o dia que essa reivindicação foi crescendo. Foi através de muita luta! E a mulher lutou: no início dos anos 70 começaram a surgir mulheres que queriam discutir seu lugar no mundo. Nessa década, o movimento feminista começou a se propagar na América Latina.




Com o Brasil cada vez mais se modernizando, com a industrialização se instalando, a mulher sentiu necessidade de atuar dentro desse novo mercado de trabalho. A mulher queria mostrar que podia sim ajudar no orçamento familiar através de sua força de trabalho fora de casa.



As músicas mais marcantes de Chico que giram em torno da mulher foram compostas na década de 70. Direta ou indiretamente, não se pode negar que Chico contribuiu com a luta das mulheres pela vez delas na sociedade. Apesar de ele descrever algumas mulheres afetadas por paixões arrebatadoras, sem dúvida deu voz às mulheres em suas músicas, abriu o microfone para que elas pudessem vomitar tudo o que queriam falar, deixou a mulher desabafar numa época de censura irremediável. Alguns criticam Chico dizendo que suas músicas são machistas, que elas mostram a mulher do ponto de vista machista. Mas esquecem de observar o óbvio: Chico retrata a mulher como ser humano, com suas qualidades, com seus defeitos e suas fragilidades, que todo ser possui. Independente de ser homem ou mulher, todos somos frágeis. Chico deu voz às mulheres para que derramassem suas forças e fragilidades.




Cada eu lírico feminino de cada música que fala da mulher na obra de Chico pode ser visto tanto como o retrato da personalidade toda de uma mulher, quanto pode ser visto como a descrição de um momento, de alguns instantes da personalidade feminina. A mulher é um múltiplo de emoções, de ações, reações, comportamentos. E Chico conseguiu transportar isso muito bem para as suas canções.



Na música Cotidiano (do álbum Construção, de 1971)



Não é uma canção de eu lírico feminino, mas que retrata uma mulher que faz tudo, todos os dias, sempre igual, com o mesmo gás de amor sempre, como se fosse a primeira vez a cada manhã, tarde e noite, tudo para o conforto do marido, para não perdê-lo. Uma crítica ao pensamento que define a mulher como a dona de casa? Quem sabe!



Na música Atrás da Porta (do álbum Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo, de 1972)


A mulher se encontra submissa ao amado, se encontra despedaçada de amor sem aceitar a separação.


Em Olhos nos Olhos (do álbum Meus Caros Amigos, de 1976)


A mulher sofreu com o rompimento do relacionamento, mas, depois, consegue juntar forças para superar a dor e voltar a viver outros casos, outros amores, outras emoções.



Em Folhetim (do álbum Ópera do Malandro, de 1979)


É uma mulher consciente de sua autossuficiência e de seu charme entre seus amantes, adorando viver vários flertes, onde cada caso, depois, é considerado página virada em seu folhetim.



Depois deste pequeno texto, podemos ter certeza, sem receios de equívoco, que, na história da música, Chico foi e continua sendo o único artista no mundo que conseguiu e consegue descrever de forma tão bela e tão detalhadamente o universo feminino, mostrando que a mulher pode ser quem quiser, tem todo o direito de sentir as emoções que mais lhe aprouverem, com quem quiser e quantas vezes quiser. E Chico não precisou duvidar de seu sexo.