sexta-feira, 29 de março de 2019

Assim Será O Amor No Fim do Mundo (Capítulo Dois)


Capítulo Dois







FLÁVIO EXCLAMOU BESTIFICADO:


– A-ca-ba-ram com o mun-do! – disse com as mãos na cabeça, sem entender tal situação.


O rapaz, sem pensar duas vezes, saiu da casa para enxergar melhor o mundo, seguido pela namorada em estado de confusão. Juntos, constataram que o planeta terra havia sido desgraçadamente varrido. Até onde a vista pudesse alcançar, tudo não passava de um grande nada, um deserto inabitável. Parecia que uma gigantesca vassoura dos deuses havia varrido tudo e a todos, menos o casal. Fernanda chegou a correr para trás da casa onde moravam, depois correu para o lado e nada. Aquele mesmo cenário imperava por todos os cantos. O céu parecia uma fotografia antiga, meio preto e branco. Se ao menos tivessem destroços por todos os lados, carros destruídos, prédios derrubados, o casal de namorados poderia até encontrar rastros do que deveria ter acontecido. Mas nem isso. O mundo naquele momento não passava de um oceano desértico, acinzentado e recoberto por poeira.

– Flávio, o que fizeram com o mundo? – perguntou Fernanda atordoada. – Cadê todas as coisas que sempre estavam aqui, os carros, as casas, os nossos vizinhos?


A lógica perdeu espaço diante do planeta terra vazio de vida e cheio de um nada acinzentado. Que teoria filosófica ou científica explicaria aquilo?


Flávio, num arrepio de esperança, até chegou a fechar bem os olhos torcendo para que tudo não passasse de um sonho. Abriu novamente os olhos. Não era um sonho. Ou melhor, era.  Era um pesadelo, mas real, vivo, intenso, gritante, cortante e duramente angustiante.


Quem poderia explicar por que o mundo estava daquele jeito? Onde se encontravam, agora, os profetas, aqueles que gritavam a plenos pulmões por todas as ruas da cidade que o fim do mundo estava próximo? “Irmãos, o fim se aproxima!”, eles sentenciavam histericamente. Onde estavam os anunciadores dos novos tempos, dos últimos tempos, dos piores tempos para todos aqueles que não se convertessem à verdade sagrada, absoluta e dogmática? Deus, então, viera buscar seu povo escolhido? Sobrara apenas o casal jovem de namorados. Viria o deus buscá-los na próxima viagem? Será mesmo que todos – todos! – foram salvos, menos o casal de namorados? E olha que não fora nem uma nem duas vezes que as Testemunhas de Jeová haviam lhe convidado para visitarem a sua igreja. Por que não aceitaram? Ao menos estariam salvos naquele instante. Mas os dois sempre foram éticos demais para acreditarem em algo só para não serem mandados ao inferno ou só para terem as almas salvas no paraíso.


Ou então deveria ter sido uma invasão alienígena. Uma visitinha básica dos amigos de outros planetas. Raptaram a humanidade com o objetivo de fazer testes e mais testes e mais testes. Deixaram tudo bagunçado, afinal os seres humanos não queriam cooperar. Se não foram por bem, com certeza, levando em consideração a situação atual do planeta, foram levados por mal, contra as suas vontades.


– Flávio! – exclamou Fernanda.


Ele olhou para os olhos dela. Olhos de pavor.


– Me bate, Flávio!


– O que é isso, Fê? – disse colocando as mãos na cabeça, talvez com receio de perder o pouco da sanidade que ainda preservava.


– Me bate!


– Claro que não!


– Já disse, me bate!


– Claro que nã... – antes que terminasse a frase, levou um profundo tabefe na cara.


Daria para ouvir do outro lado da rua, se existisse rua e se houvesse algum ser humano ali por perto. Flávio se desequilibrou e caiu de joelhos no chão. Onde estava todo mundo para presenciar aquela cena desesperadora e meio patética dos dois? Ninguém. Ressoava somente a canção do silêncio cor de cinza.


Fernanda e Flávio levavam uma vida tranquila a dois. Viviam quase que independentemente do resto do mundo, não fosse o fato de trabalharem com pessoas. Talvez somente por isso é que ainda mantinham algum contato humano que não fosse entre eles próprios. Fernanda assistia, todos os dias, o desenrolar da política de seu país e, baseada nas teorias filosóficas e sociológicas que aprendera na faculdade de Ciências Sociais, trabalhava metodicamente durante a semana na escrita de artigos para serem publicados de quinze em quinze dias na revista “Pólis Pós-Moderna”; enquanto que seu namorado Flávio, todos os dias, caminhava metodicamente até a Escola Pública de Ensino Fundamental e Médio Monteiro Lobato, não muito longe da casa onde moravam, para dar aulas de inglês. A vida a dois, todos os dias, era metodicamente muito bem planejada, pautada sempre na lógica. Mas isso era antes. Hoje, toda aquela racionalidade havia caído por terra. Porque, simplesmente, não existia razão que pudesse explicar o estado em que o planeta terra se encontrava. O mundo perdera sua cor na noite anterior.


Flávio colocou a mão no lado do rosto que recebeu a bofetada. Rapidamente Fernanda abraçou o namorado no chão e implorou por perdão, afinal de contas, fizera aquilo de cabeça quente, sem pensar. Os dois se levantaram e Flávio guardou a namorada nos braços, num gesto direto de afago, dizendo:


– Eu sei, meu amor – disse o rapaz em tom de compreensão. – Eu sei que tudo está confuso na sua cabeça. Na minha também. Será que isso tudo é real? Na noite passada não ouvi nenhum barulho, nada que me fizesse suspeitar de que o mundo tinha virado de cabeça pra baixo.


– Eu dormi feito uma pedra, Flávio. Não entendo por que as coisas estão assim.


Nesse instante, Fernanda pensou rápido: para tentar desvendar todo aquele mistério surrealista, a garota correu de volta para dentro da casa e ligou a televisão pequena da sala.


“... Dessa forma, o presidente da república afirma que, do jeito que as coisas estão, o melhor a se fazer será implantar uma monarquia absolutista no país, onde ele próprio será, sem eleições, claro, o monarca maior a comandar essa nação...”, um dos canais abertos reproduzia uma notícia jornalística. Fernanda mudou para outro canal. “... Você aí de casa vai colocar três ovos, leite, um pouco de trigo com fermento, da mesma maneira que o nosso mestre cuca está fazendo...”. Mudou para outro... “... A geração passada precisa entender que a psicologia...”; depois para outro... “... queremos falar sobre...” e para outro e para outro e para outro.


– Flávio, entra, vem cá ver.


Nada, nenhuma notícia sobre o que estava fora de casa. Parecia que tinham se esquecido deles dois. A televisão estava com sua programação normal, ninguém falava nada sobre o mundo devastado. Muito estranho, no mínimo. A vida, além da deles dois, ainda existia, entretanto apenas dentro da TV. Parecia que o casal de namorados estava numa espécie de universo paralelo. Mas pensar isso seria absurdo, essas loucuras de teoria da conspiração formuladas por adolescentes espinhentos sem vida sexual ativa.


                  De repente, soou no ar:

                  "E les po dem          nos ou vir?".

             Flávio e Fernanda se entreolharam, tomados por um espanto. Que diabo era aquilo que tinham ouvido? 

                  "Fique ca    lado!         Es ta mos com pro          blemas".

O casal se assustou. Aquilo eram vozes, quase que sussurros. E não eram deles. Aquelas vozes estavam soando quase como um sopro naquele deserto que outrora fora uma cidade razoavelmente decente de se viver. De onde vinham aquelas vozes?

Num impulso, Flávio puxou Fernanda pelo braço, saindo da casa com a namorada, dizendo:


– Se ficarmos aqui dentro, não vamos entender o que realmente tá acontencendo lá fora! Vamos buscar respostas!


Foram correndo até a garagem da casa. Por sorte, o carro ainda estava lá, não sumira junto com o resto do mundo. A namorada voltou na cozinha da casa, onde tinham iniciado o dia com um ótimo café da manhã. Voltou para pegar as chaves do carro. Abriram rapidamente as portas, entraram. Somente Fernanda tinha carteira de motorista. Pisou no acelerador sem piedade, afinal não tinha ninguém mesmo que pudesse ser atropelado. Foram os dois buscar por alguma explicação no meio daquela planície infinita, acizentada e cheia de poeira.



(Continua no próximo sábado, aqui no Blog Eu Vomitando)

sexta-feira, 22 de março de 2019

Assim Será O Amor No Fim do Mundo (Capítulo Um)


Capítulo Um






FLÁVIO GERALMENTE ACORDAVA PRIMEIRO QUE SUA NAMORADA. Não era tão cedo. Devia ser umas sete da manhã. Levantava-se e, religiosamente, a primeira coisa que fazia era ir ao banheiro mijar. Como todos os dias, deixava pra tomar banho e escovar os dentes depois do café da manhã.

A vida a dois era boa. Flávio nunca entendeu por que algumas pessoas perdiam tempo com baladas, festas, se esfregando umas nas outras, enchendo a barriga de saliva – dos beijos que cheiravam a sexo explícito. Flávio tinha vinte e cinco anos. Não era velho, porém preferia o repouso e a serenidade do seu namoro com Fernanda a ter que gastar o seu suado dinheiro com bebidas alcoólicas que depois de poucos minutos iriam ser despejadas pela urina nas ruas ou em privadas fedorentas.

Os dois brigavam? Sim, claro, uma vez ou outra, mas nada que fosse motivo para separação. Aprenderam rápido que a vida dividida deve ter a razão como guia. Sabiam que as brigas nunca levavam a lugar algum, portanto, o mais viável, pela lógica, era evitá-las. Prezavam, digamos, pela “coerência conjugal”, como eles mesmos metodicamente falavam.

– Fê, o café já tá pronto – avisou Flávio chamando sua namorada, quase esposa, pelo apelido carinhoso que já usava há cinco anos de relacionamento.

Nos primeiros dois anos de namoro, Flávio morava com sua mãe solteira e Fernanda com o pai e a mãe casados. O casal jovem se conhecera num supermercado popular da cidade, numa situação nada agradável para Fernanda. A garota havia sido assaltada logo na saída das compras, estava desesperada, atordoada. Era a primeira vez que passava por uma situação daquelas. Flávio, que estava chegando minutos depois do ocorrido, percebeu a garota angustiada no estacionamento da saída do supermercado e resolvera, então, ajudar, acalmando-a e levando a jovem até a delegacia mais próxima para fazer o boletim de ocorrência. A partir daí, travaram uma amizade. Depois de meio ano, decididos, começaram a namorar.

– Caramba! – exclamou Fernanda surpresa, que acabara de entrar na cozinha. – Como você sabia que eu tava a fim de comer esse pãozinho maravilhoso que só você sabe fazer? – Deu um abraço bem forte e carinhoso no namorado que às vezes dava o ar da graça de ser um pouco romântico à moda antiga.

Tomaram café juntos, como todos os dias.

E, como todos os dias, Flávio saiu primeiro da mesa. Fernanda trabalhava todos os dias em casa, escrevendo para uma revista que publicava seus artigos sobre política de quinze em quize dias, enquanto que o namorado, professor de inglês, precisava se adiantar para não chegar atrasado ao seu trabalho de todos os dias. Então, correu para o banheiro, escovou rapidamente os dentes debaixo do banho frio daquela água que jorrava do chuveiro sem piedade, como todos os dias. Enxugou-se nas pressas, puxou a primeira calça que viu na frente, roubou do guarda-roupa a sua camisa preferida – que estampava descaradamente o nome e a imagem do seu filme predileto, Blade Runner: o caçador de andróides – e beijou sua namorada na boca antes de abrir a porta de casa para ganhar o vasto mundo, como todos os dias.

Abriu a porta. Mas, diferentemente de todos os dias, Flávio ficou paralisado diante do mundo que agora se apresentava para ele. Pasmado, com bastante dificuldade, gaguejando, conseguiu exclamar:

– A... am... amor... – de olhos arregalados, fez uma pausa dramática. – Acabaram com o mundo!

O planeta terra estava devastado. Não existiam mais casas, nem prédios, nem as poucas árvores; nenhum carro, nenhuma moto, nenhuma bicicleta, nenhum ônibus; calçadas e asfaltos não existiam mais. O chão estava em estado de pura terra batida. Era como se o mais surrealista dos pintores tivesse derramado de propósito pura tinta cinza em cima de todo aquele quadro. O mundo agora estava infinitamente cinzento e o chão recoberto por poeira. E não havia sequer uma alma viva para contar a eles o que acontecera na noite anterior.

 (Continua no próximo sábado, aqui no blog)