quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

PEQUENO CONTO SOBRE O PEQUENO ESPAÇO DE TEMPO QUE É A VIDA


O homem inventou a sociedade com o objetivo de se manter vivo em meio aos perigos que outros seres vivos representavam a ele e contra a violência que o outro homem poderia lhe causar ocasionando, por consequência, sua morte. 


Por isso, inventou leis, regras, costumes, inventou a tal da ética, criou a moral, a culpa, o pecado, o certo e o errado, o bem e o mal, criou os tribunais para julgar os crimes, criou casas para se esconder, carros, estradas, criou os presídios para colocar aqueles que cometiam erros; o homem se viu preso na sua própria casa com medo da violência e dos crimes dos criminosos.


O homem inventou a política com – dizendo o próprio homem – a finalidade de colocar ordem na casa maior chamada sociedade. Disso, surgiram as contas para pagar, os impostos; surgiram os políticos, surgiu a corrupção política, as desigualdades sociais surgiram por consequência, depois veio o desemprego, que assolou a vida social do homem, veio o sentimento de desolação por se ver impossibilitado de pagar as suas dívidas, a desgraçada impossibilidade de pagar os boletos – malditos sejam os boletos!


O homem entrou em depressão, viu a fome invadir a sua casa. O homem se trancou naquele velho quarto fedido e só foi encontrado dias depois, dependurado, o pescoço preso por uma corda que foi a única posse que o homem tinha conseguido pagar sem parcelar.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Ler é dialogar com a própria alma


Um livro é um conjunto de idéias. A leitura de um livro é uma troca de idéias entre o leitor, que já carrega consigo uma considerável bagagem cultural, de filmes, de outros livros, de revistas, de conteúdos da internet, de pesquisas atualizadas no campo da ciência, e o escritor, que sempre precisa nos dizer algo, que nos oferece um olhar diferenciado sobre algum assunto.

A leitura de um livro é um diálogo. Digo isso até por mim, por experiência própria, quando estou lendo um livro que me cativa, de vez em quando me pego falando comigo mesmo, como se estivesse conversando com o autor da obra. Tem vezes que tento ser discreto, fingir que sou normal, sussurrando comigo mesmo. Mas isso não é nenhuma loucura, meus amigos e amigas. Se a leitura de um livro é uma troca de idéias, logicamente que o leitor sente a necessidade de conversar consigo mesmo. Isso se chama reflexão. Você está diante do espelho, você observa a você mesmo. Reflexo. Você está monologando com você mesmo, então você está dialogando com sua própria alma. Reflexão. É uma dialética.

Escher, Autorretrato em Esfera Espelhada, 1935.

Na filosofia de Sócrates e Platão, Dialética é o diálogo filosófico, onde duas ou mais pessoas participam. O objetivo é sair do ponto de partida para o ponto de chegada, ou seja, cada interlocutor expõe sua doxa, que em grego significa opinião sem fundamento (o famoso eu acho), numa espécie de processo de modelar, onde as opiniões infundadas começam a se contrapor umas as outras, gerando em alguns momentos algumas contradições necessárias para, então, chegarmos ao conhecimento verdadeiro, que em grego chamamos de episteme

Sócrates e Platão.

Ler um livro, portanto, é moldar sua própria alma. Quando lemos um livro, saímos do lugar cômodo, por isso que para muitos a leitura é difícil, porque é difícil mudar, é difícil modelar sua própria alma, sendo muito mais confortável permanecer imóvel, paralisado, acomodado.


No livro VII da República, o filósofo Platão nos demonstra a famosa Alegoria da caverna, que muitos chamam de mito da caverna. Através dessa metáfora, o filósofo grego conta que conhecer é sair da caverna. 

Obra A República de Platão, escrita por volta do século IV a. C..

A caverna é o local onde estamos presos por correntes da nossa própria ignorância, estamos numa posição tal que somente conseguimos enxergar as sombras que passam nas paredes dessa caverna. Iludidos, achamos que estas sombras é que são a realidade, mal sabendo que elas não passam projeções das coisas que estão fora da caverna, e estas sim são verdadeiras, lá fora é o mundo verdadeiro.


A leitura de um livro é uma troca de idéias, e poucos estão dispostos a trocar idéias, a absorver novas idéias, poucos conseguem despertar do sono da falta de coragem de arrebentar as correntes. Por isso que, no momento de seu julgamento, o mestre de Platão, o filósofo Sócrates, para justificar o seu labor filosófio, disse:

Uma vida não examinada não merece ser vivida

Do que adianta vivermos como eternos prisioneiros? O sentido da vida é sempre arrebentar todos os tipos de correntes da ignorância.

Matheus Caio Queiroz, eu mesmo, desbravando novas terras, novos mundos.


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Ser humano: O Animal Criador das Suas Próprias Verdades

Não existe uma verdade absoluta sequer que preencha totalmente o maior vazio da existência humana, a dúvida: por que nascemos - por que existimos? É fato que existem várias e variáveis verdades relativas que rodopiam, rodeiam, dançam, e sustentam a vida dos seres ditos humanos que habitam o planeta Terra.

Talvez quem melhor se dedicou a debater, com sua carne e sangue, sobre verdades absolutas vazias e verdades relativas que sustentam a vida humana foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche.


Cito aqui para vocês um trecho do Prólogo de um de seus livros considerados mais dedo na ferida da humanidade, o seu Crepúsculos dos Ídolos, publicado originalmente em 1889:

Há mais ídolos do que realidades no mundo: este é meu 'mau olhar' para este mundo, é também meu 'mau ouvido'... Fazer perguntas com o martelo e talvez ouvir, como resposta, aquele célebre som oco que vem de vísceras infladas — que deleite para alguém que tem outros ouvidos por trás dos ouvidos — para mim, velho psicólogo e aliciador, ante o qual o que queria guardar silêncio tem de manifestar-se...

(São Paulo: Companhia das Letras, 2017, pág. 07) 


Fica claro que o filósofo tem como objetivo investigar os ídolos da humanidade, cutucando cada um com seu impiedoso martelo para identificar o vazio, o oco, desses ídolos e em seguida arrebentar um a um, deixando-os em infinitos cacos.
 
Capa da primeira edição, alemã, de Crepúsculo dos Ídolos.

Nietzsche deixa claro que este seu livro, que é o seu penúltimo em vida, é uma – como ele mesmo diz – "uma grande declaração de guerra" (idem, pág. 8) a todo ídolo que permeia a nossa humanidade. Ídolo, neste contexto, significa todo tipo de ilusão, de crença, de verdades consideradas absolutas que o homem criou para sustentar sua própria existência, para colocar sentido ao período que ele se rasteja pela face da terra. 

        O que mais nos diferencia fundamentalmente dos outros seres vivos é a cultura. Digamos que ela tem o papel de, por assim dizer, diminuir na nossa natureza o que nela existe de animalesco. Portanto a cultura é responsável por nos afastar – ou tentar nos afastar – do nosso próprio reino animal.

Cena do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de 1968, onde o diretor Stanley Kubrick mostra o passado e o futuro do ser humano: um passado marcado pela animalidade e um futuro erguido pela evolução da cultura, da tecnologia, marcado pela exploração do espaço.

 Para a nossa ciência, o aparelho psíquico humano é o mais evoluído comparado a qualquer outro ser que conhecemos até então. Isso permite ao homem a capacidade de recriar. O que quer dizer que não somos dependentes somente daquilo que a natureza nos oferece, somos capazes de ir além: podemos interferir na natureza, transformando a matéria prima, recriando o mundo que nos foi dado. Isso é cultura. É o cultivar. Cultivar significa, nos dicionários, tratar a terra, criar artificialmente a partir daquilo que existe de forma natural. E o ser humano criou. Criamos uma coisa chamada lógica; criamos a linguagem; criamos as línguas. Transformamos o mundo em letras e números. O universo passou a ser, então, objeto de investigação.
Infinitas perguntas sem respostas. Quando nos vimos carentes de sentido de vida – tudo parecia vazio e obscuro –, criamos nossas próprias respostas. Criamos mundos além deste próprio. Criamos as religiões, criamos o mundo dos mortos, criamos Hades, o submundo, o céu, o inferno, o Paraíso, o Juízo Final, os deuses, santos, rituais sagrados, costumes em cima de dogmas considerados inquestionáveis, criamos regras para conviver uns com os outros, criamos a sociedade, as leis, as tábuas, os pergaminhos, os desenhos, os livros, remédios, carroças, carros, computadores, telefones, mundos virtuais, robôs, bombas, criamos tudo isso para suportar a vida... ou para morrer mais rápido. E morremos sempre sem saber, morremos com as nossas próprias verdades.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

A Crença dos Desgraçados – Notas sobre Os Sertões, Vidas Secas e Os Fuzis.


"Retirantes" (1944), pintura de Candido Portinari.


Diante das parcas possibilidades de uma vida razoavelmente confortável, sem o mínimo para se viver como gente, o homem é possuído pelo arrepio dilacerante da falta de um sentido para a sua vida. Ele precisa acreditar em alguma coisa para se manter vivo, ainda que sua vida seja tão indigente quanto a de um animal abandonado.

Quando tudo ao seu redor é caatinga que massacra, clima de inferno tropical, um seco sertão deserto; quando a fome é uma inimiga cotidiana, ainda há possibilidades para sobreviver?

É a peleja do homem contra três vazios: o de dentro, o de mais dentro ainda e o de fora, que são respectivamente o vazio da barriga sem comida, o vazio da alma desesperançada e o vazio do espaço em que se habita, em que se vive – sobrevive. Tão trágico quanto uma mãe que não pode ter filho é uma terra que sofre de esterilidade, que tinha tudo para ser e não foi.

Quando a terra não pode ouvir nosso clamor que insiste que ela nos dê frutos e a barriga grita de fome, talvez a única saída que nos resta é a crença. A crença enche nossa alma de esperança, e a esperança é o combustível dos desgraçados.

O homem é bicho danado, teima em viver mesmo que se arrastando de desgraça em desgraça pela face da terra. O instinto não se cala. Quando a má sorte ameaça, a última maneira que encontra de rebater os infortúnios do sertão, da falta de chuva e de comida, é enchendo a barriga de crendices. Seu mais que último subterfúgio.

Essa epopéia da vida sertaneja sem pompas pode ser bem ilustrada com um livro e dois filmes:


(1) Os Sertões, de 1902, do escritor Euclides da Cunha, retrata um povo incompreendido que busca na crença a sua salvação. 

Primeira edição da obra.

O próprio autor declara que seu objetivo em escrever tal livro é registrar – livro-reportagem – as características dos sertanejos do Brasil, registrar porque ele próprio não vislumbrava um confortável futuro para aquele povo esquecido no universo:

Intentamos esboçar palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. E fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexo de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação metal em que jazem, as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização.” (São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 7)

Se a civilização representava um devastador inimigo, a saída que o povo da comunidade de Canudos, no interior da Bahia, encontrou foi depositar toda sua crença em Antônio Conselheiro, um místico líder religioso. 

Desenho retratando o revolucionário Antônio Conselheiro.


Os oprimidos sertanejos acreditavam que ele era o enviado divino encarregado da missão de libertar o povo das lamúrias do vazio da barriga, do vazio da alma e do vazio da terra.

Sertanejos aprisionados pelo Exército em Canudos, após a duradoura guerra.




(2) No filme Vidas Secas, de 1963, de Nelson Pereira dos Santos (inspirado no livro de mesmo nome do escritor Graciliano Ramos), a primeira impressão que temos é de secura. 

Cartaz original do filme.

Temos Fabiano (o pai), Sinha Vitória (a mãe), Baleia (a cachorrinha) e o menino mais velho e o menino mais novo (filhos) como cinco almas penadas, cinco vidas secas, vagando pelo sertão em busca de um lugar sob a sombra de alguma mísera árvore. 


Parecem mais bichos do que a sua cachorrinha Baleia, caminham cambaleando, trocando uns com os outros palavras que quase não são pronunciadas por suas bocas sedentas, parece que quase não sabem falar. Apenas sonham. E Sinha Vitória é talvez a mais sonhadora, sonha que um dia será gente quando enfim sua tão desejada cama de couro. As almas contaminadas pelo sol seguem em dura marcha o seu êxodo sertanejo acreditando numa vida menos seca.



(3) Em 1964, Ruy Guerra nos presenteia com o filme Os Fuzis, filme esse que conta a história de um grupo de soldados que são mandados ao sertão baiano com a missão de impedir que a população esfomeada invada um armazém de um homem com comida suficiente para todas as barrigas vazias.

Cartaz original do filme.


Mais uma narrativa que retrata os três vazios: o vazio da barriga, o vazio da alma e o vazio da terra seca.

Ator Nelson Xavier interpretando um dos soldados que foram enviados ao sertão.

Guiados por um guru muito parecido com Antônio Conselheiro, a população passa a esperar que um boi, considerado sagrado, comece a fazer milagres e dê fim ao sofrimentos que brotam naquela região nordestina. 

Líder religioso que guia o seu povo na esperança que o boi faça milagres.

A crença é uma forma de manter a cabeça ocupada para que não se lembre das dores do corpo e da alma. O vazio nos leva a acreditar. E acreditar é uma forma de se manter vivo. Destaco uma fala do filme: “a gente tem fome e tem fé, só fica faltando o milagre”.

Retomando a palavra com Euclides da Cunha, na mesma página citada acima, ele ainda nos diz mais:

Autor do clássico "Os Sertões".

A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável ‘força motriz da História’ (...) no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.” (mesma página citada acima)

Esse sertão abordado pelo presente texto é só uma metáfora. Qualquer lugar pode ser sertão. O sertão é o espaço de enfrentamento das nossas mazelas. Um povo entregue às desgraças sociais e políticas busca sempre desesperadamente por uma salvação. Porque acreditar é uma forma de não morrer.

sábado, 21 de abril de 2018

Um Convite às Crônicas de Elias Ribeiro Pinto

Imprudente oficio é este, de viver em voz alta
Rubem Braga


O autor está estreando em livro, este aqui, mais de 35 anos depois de ter começado a escrever para o publico. Durante todo esse tempo tentou dar forma à vastidão de ideias, observações, aprendizados, cultura e inventividade que acumulou”. Quem nos diz isso é Lucio Flávio Pinto, jornalista e fundador do Jornal Pessoal, patrimônio já histórico do nosso Pará. Nesse trecho, Lúcio se refere a seu irmão, um sujeito que possui uma cabeleira que chega a bater nos ombros. Você, leitor, perguntará: “Ozzy Osbourne?”. Eu respondo que não. A cabeleira é grande, mas ondulada, enrolada... Impulsivamente, você dirá: “Plant! Plant! Roberto Plant! Cabeleira inconfundível!”. Não, não! A cabeleira desse sujeito, do qual estamos falando, também é inconfundível, certamente, contudo ele não é nenhum vocalista de banda de rock. Ele é escritor... escritor paraense. Você perguntará: “Ah, claro... Bruno de Menezes? Ruy Barata? Haroldo Maranhão? Dalcídio Jurandir? Benedito Nunes? Benedicto Monteiro? Ou Max Martins?”. Então, depois dessas exaustivas tentativas frustradas, se dando por vencido, você desistirá, concluindo: “Acho que nenhum desses, não é? Não tinham a cabeleira que batia nos ombros”. Ora, meus caros amigos, o trecho que abre nosso texto é sobre Elias Ribeiro Pinto, nosso cronista paraense! Sujeito de óculos redondos, tais quais os do lendário John Lennon, cronista que, à época das palavras do irmão Lúcio, estava publicando seu primeiro livro, intitulado “Crônicas a Sangue Frio”. Deixem-me, primeiramente, contar para vocês como “Crônicas a Sangue Frio” – essa belezinha de livro! – me caiu em mãos. 


Nesse meu destino cigano de andanças pelas livrarias da vida, pelos sebos (meus pontos preferidos), tive a sorte de encontrar um livro de capa alaranjada com a imagem do mesmo sujeito possuidor dos traços descritos no início deste texto, imagem que mais parecia um busto desenhado, um busto de cabelos ondulados, caídos até os ombros, “vestido de lunetas” (lembrei-me da música dos outros cabeludos, Os Novos Baianos), lunetas redondas. Logo de cara lembrei, com alguma dificuldade, que conhecia aquele escritor de algum lugar, de nome e de cabeleira. Num lampejo literário, reconheci: é o cabeludo que tem uma coluna no Jornal! Folheei várias vezes o livro para me certificar da descoberta; depois que tive certeza, comprei o livro. 


Elias Ribeiro Pinto nasceu em 1959. A sua carreira e correria – que, como ele mesmo já me disse, é “mais correria que carreira” – começaram muito cedo, escrevendo para jornais desde os seus tenros quinze anos, à maneira de um Millôr Fernandes que também começou precocemente. Na sua bagagem, consta que escreveu no extinto A Província do Pará, tradicional jornal da imprensa paraense, onde assinou entrevistas com figuras ilustres em página dupla e uma página dominical. 


No Diário do Pará, começou a escrever em 1996 como autor da página de domingo; de 1999 a 2002, quem diria, foi repórter especial do mesmo jornal; e de 2002 para cá – para a nossa felicidade literária! – escreve regularmente suas crônicas no mesmo Diário do Pará.

Coluna de Elias Ribeiro Pinto no jornal Diário do Pará

Um interminável e incorrigível retratista da nossa Belém do Pará. Ter encontrado um livro de sua autoria foi uma das minhas maiores alegrias de leitor, porque significava poder ter os textos do Elias num papel mais duradouro, o que quer dizer poder ler e reler seus textos em qualquer lugar, a qualquer hora, sem o receio da efemeridade veloz das folhas de jornais. 

Crônicas a Sangue Frio” foi lançado em 2012 pela coleção “Pará de Todos Os Versos, De Todas as Prosas”, pertencente ao projeto “Orgulho de Ser do Pará”, idealizado pelo jornal Diário do Pará, que selecionou e publicou, entre os anos de 2010 a 2012, o melhor da literatura paraense representada em dez autores, nomes de peso da nossa poesia, prosa, crônica, ensaio. Nesse livro de estreia – considerado um opúsculo, visto ter um pouco mais de cem páginas – são reunidas as mais diversas crônicas que Elias produziu em todos esses anos, de 2002 a 2012. Pode parecer clichê, mas com certeza esse é um daqueles livros que o leitor não consegue parar de ler depois da primeira página. O livro é divido em:

A vida foi feita para acabar num livro (abertura): Uma espécie de mosaico literário que reúne os relatos confessionais de como Elias adentrou o mundo dos livros.

Retrato do cronista quando (mais ou menos) jovem: Uma retrospectiva das aventuras de Elias, com direito à expedição nos cafundós da Amazônia que ele “mais ou menos” viu.

Inventário boêmio: Uma catalogação dos bares que fizeram historia em Belém e dos seus ilustres frequentadores, bons de copo e de papo, com a menção honrosa ao nosso – ainda vivo, mesmo que respirando por aparelhos – Bar do Parque.

Breve almanaque de caras e tipos populares de Belém: De memória, Elias elenca as figuras de personalidade marcante que formam a “cara de Belém”.

Páginas da vida: Que vai desde o primeiro peru – que eu diria bêbado – que Elias ganha do Jornal para o qual trabalha até a visita do pensador mais estrábico da França, o escritor e filósofo Jean-Paul Sartre, acompanhado de sua intelectual esposa Simone de Beauvoir, que visitaram a nossa hospitaleira e calorosa Belém para uma memorável noite de autógrafos.
– E termina magistralmente com: –

A vida foi feita para acabar num livro (fecho): Com uma bela e intrigante crônica clínica sobre o vício por livros que chega ao ponto de ser caso de hospício.

Elias tem uma escrita muito peculiar, é justamente essa peculiaridade que chama a atenção do leitor. Se você for um leitor atencioso, consegue logo farejar quem está por trás daquelas palavras. Seu texto não é kantianamente sistemático, tampouco hegelianamente prolixo. Eu diria que seu estilo de escrita é intelectualmente boêmio, com pitadas certeiras de um humor quase que socrático, digno de um cronista que se preza. 


Seus textos são cheios de referências livrescas, mostrando o quanto ele possui uma bagagem literária invejável, daqueles viciados em leitura mesmo, beirando caso de saúde e internação na Clínica Dr. Simão Bacamarte, onde só os quixotescos residem.

Elias em seu habitat de escritor, quase sendo engolido por seus livros
Certamente não é uma escrita que provoca bocejos, muito pelo contrário, provoca é a imaginação, provoca em nós o risos com as varias situações, algo de muito agradável. Confesso que só fui ter prazer igual quando li, vibrante e a gargalhadas em público – nunca notei se as pessoas ao meu redor achavam que eu era louco –, “O Auto da Compadecida”, do nosso saudoso e sábio Ariano Suassuna. A escrita do Elias é proserosa. Isso mesmo que você leu: proserosa. Não foi nenhum erro de digitação ou descuido de revisão. Criei esta palavra me utilizando do neologismo (acham que só o Caetano Veloso pode? Eu também quero, ora!). Pro-se-ro-sa, registrem aí nos novos dicionários: significa uma prosa prazerosa! Claro, porque, por vezes, o leitor de “Crônicas a Sangue Frio” quase que se depara com o Elias pessoalmente na sua frente, falando cara a cara, só faltando pedir pra descer uma cerveja estupidamente gelada pra molhar a garganta. “Crônicas a Sangue Frio” é quase um livro confessional, à maneira de Santo Agostinho, só que com muita andança por Belém, cerveja e muitos livros. Se nos “Ensaios” de Montaigne, o autor nos adverte: “Portanto, leitor, eu sou eu próprio a matéria de meu livro”; no caso de “Crônicas”, Elias poderia parafrasear na entrada: Portanto, leitor, eu, - e acrescentaria: - mais a vida boêmia, os tipos populares e os tipos notáveis, as livrarias que fizeram história e a nossa grande Belém, somos todos a matéria do meu livro. O poeta paulista Roberto Piva, num registro documental sobre sua obra, diz logo no início: “eu só acredito em poeta experimental que tem vida experimental” (Assombração Urbana com Roberto Piva, 2004); eu que vos escrevo, como sou vivo pra cachorro, faço total proveito das palavras do Piva e digo da minha maneira: não acredito em cronista que não tenha uma vida boêmia. E Elias Ribeiro Pinto é também boemia, daquele malandro que o Chico canta, o bom malandro, o malandro da nata da malandragem de outros carnavais que não existe mais, Elias é o último desses moicanos, um dos poucos sobreviventes, e isso respinga nas suas “Crônicas”. Esse texto, mais do que uma crítica – até porque não me considero a altura de um crítico literário como um Antônio Cândido ou um Benedito Nunes –, pretende, antes, ser um convite, um convite ao livro de estreia de Elias, o livro “Crônicas”, e às suas crônicas.

Considero o hábito da leitura (...) um vicio comparável ao da bebida, do jogo, do tabaco ou das drogas. Pelo menos quanto à dependência. Uma vez dependente, não há salvação. A luta é conseguir ficar cada dia limpo das leituras e dos livros” (Crônicas a Sangue Frio, 2012, p. 98).