Imprudente oficio é este, de viver
em voz alta
Rubem
Braga
“O autor
está estreando em livro, este aqui, mais de 35 anos depois de ter começado a
escrever para o publico. Durante todo esse tempo tentou dar forma à vastidão de
ideias, observações, aprendizados, cultura e inventividade que acumulou”. Quem
nos diz isso é Lucio Flávio Pinto, jornalista e fundador do Jornal Pessoal,
patrimônio já histórico do nosso Pará. Nesse trecho, Lúcio se refere a seu irmão,
um sujeito que possui uma cabeleira que chega a bater nos ombros. Você, leitor,
perguntará: “Ozzy Osbourne?”. Eu
respondo que não. A cabeleira é grande, mas ondulada, enrolada... Impulsivamente,
você dirá: “Plant! Plant! Roberto Plant!
Cabeleira inconfundível!”. Não, não! A cabeleira desse sujeito, do qual
estamos falando, também é inconfundível, certamente, contudo ele não é nenhum
vocalista de banda de rock. Ele é escritor... escritor paraense. Você
perguntará: “Ah, claro... Bruno de
Menezes? Ruy Barata? Haroldo Maranhão? Dalcídio Jurandir? Benedito Nunes?
Benedicto Monteiro? Ou Max Martins?”. Então, depois dessas exaustivas
tentativas frustradas, se dando por vencido, você desistirá, concluindo: “Acho que nenhum desses, não é? Não tinham
a cabeleira que batia nos ombros”. Ora, meus caros amigos, o trecho que
abre nosso texto é sobre Elias Ribeiro Pinto, nosso cronista paraense! Sujeito
de óculos redondos, tais quais os do lendário John Lennon, cronista que, à
época das palavras do irmão Lúcio, estava publicando seu primeiro livro,
intitulado “Crônicas a Sangue Frio”. Deixem-me,
primeiramente, contar para vocês como “Crônicas
a Sangue Frio” – essa belezinha de livro! – me caiu em mãos.
Nesse meu destino cigano de andanças pelas
livrarias da vida, pelos sebos (meus pontos preferidos), tive a sorte de
encontrar um livro de capa alaranjada com a imagem do mesmo sujeito possuidor dos
traços descritos no início deste texto, imagem que mais parecia um busto
desenhado, um busto de cabelos ondulados, caídos até os ombros, “vestido de lunetas” (lembrei-me da
música dos outros cabeludos, Os Novos Baianos), lunetas redondas. Logo de cara
lembrei, com alguma dificuldade, que conhecia aquele escritor de algum lugar,
de nome e de cabeleira. Num lampejo literário, reconheci: é o cabeludo que tem
uma coluna no Jornal! Folheei várias vezes o livro para me certificar da
descoberta; depois que tive certeza, comprei o livro.
Elias Ribeiro Pinto
nasceu em 1959. A sua carreira e correria – que, como ele mesmo já me disse, é
“mais correria que carreira” – começaram muito cedo, escrevendo para jornais desde os seus tenros quinze anos, à maneira de um
Millôr Fernandes que também começou precocemente. Na sua bagagem, consta que
escreveu no extinto A Província do Pará,
tradicional jornal da imprensa paraense, onde assinou entrevistas com figuras
ilustres em página dupla e uma página dominical.
No Diário do Pará, começou a escrever em 1996 como autor da página de
domingo; de 1999 a 2002, quem diria, foi repórter especial do mesmo jornal; e
de 2002 para cá – para a nossa felicidade literária! – escreve regularmente
suas crônicas no mesmo Diário do Pará.
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Coluna de Elias Ribeiro Pinto no jornal Diário do Pará |
Um interminável e incorrigível retratista da nossa Belém do Pará. Ter
encontrado um livro de sua autoria foi uma das minhas maiores alegrias de leitor,
porque significava poder ter os textos do Elias num papel mais duradouro, o que
quer dizer poder ler e reler seus textos em qualquer lugar, a qualquer hora,
sem o receio da efemeridade veloz das folhas de jornais.
“Crônicas a Sangue Frio” foi lançado em
2012 pela coleção “Pará de Todos Os
Versos, De Todas as Prosas”, pertencente ao projeto “Orgulho de Ser do Pará”, idealizado pelo jornal Diário do Pará, que selecionou e
publicou, entre os anos de 2010 a 2012, o melhor da literatura paraense
representada em dez autores, nomes de peso da nossa poesia, prosa, crônica,
ensaio. Nesse livro de estreia – considerado um opúsculo, visto ter um pouco
mais de cem páginas – são reunidas as mais diversas crônicas que Elias produziu
em todos esses anos, de 2002 a 2012. Pode parecer clichê, mas com certeza esse é
um daqueles livros que o leitor não consegue parar de ler depois da primeira
página. O livro é divido em:
A vida foi feita para acabar num
livro (abertura): Uma espécie de
mosaico literário que reúne os relatos confessionais de como Elias adentrou o
mundo dos livros.
Retrato do cronista quando (mais ou
menos) jovem: Uma retrospectiva das
aventuras de Elias, com direito à expedição nos cafundós da Amazônia que ele “mais ou menos” viu.
Inventário boêmio: Uma catalogação dos bares que fizeram historia em
Belém e dos seus ilustres frequentadores, bons de copo e de papo, com a menção
honrosa ao nosso – ainda vivo, mesmo que respirando por aparelhos – Bar do
Parque.
Breve almanaque de caras e tipos
populares de Belém: De memória,
Elias elenca as figuras de personalidade marcante que formam a “cara de Belém”.
Páginas da vida: Que vai desde o primeiro peru – que eu diria
bêbado – que Elias ganha do Jornal para o qual trabalha até a visita do
pensador mais estrábico da França, o escritor e filósofo Jean-Paul Sartre,
acompanhado de sua intelectual esposa Simone de Beauvoir, que visitaram a nossa
hospitaleira e calorosa Belém para uma memorável noite de autógrafos.
–
E termina magistralmente com: –
A vida foi feita para acabar num
livro (fecho): Com uma bela e
intrigante crônica clínica sobre o vício por livros que chega ao ponto de ser
caso de hospício.
Elias
tem uma escrita muito peculiar, é justamente essa peculiaridade que chama a
atenção do leitor. Se você for um leitor atencioso,
consegue logo farejar quem está por trás daquelas palavras. Seu texto não é
kantianamente sistemático, tampouco hegelianamente prolixo. Eu diria que seu
estilo de escrita é intelectualmente boêmio, com pitadas certeiras de um humor quase que socrático, digno de um cronista que se preza.
Seus textos são
cheios de referências livrescas, mostrando o quanto ele possui uma bagagem
literária invejável, daqueles viciados em leitura mesmo, beirando caso de saúde
e internação na Clínica Dr. Simão Bacamarte, onde só os quixotescos residem.
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Elias em seu habitat de escritor, quase sendo engolido por seus livros |
Certamente
não é uma escrita que provoca bocejos, muito pelo contrário, provoca é a
imaginação, provoca em nós o risos com as varias situações, algo de muito
agradável. Confesso que só fui ter prazer igual quando li, vibrante e a
gargalhadas em público – nunca notei se as pessoas ao meu redor achavam que eu
era louco –, “O Auto da Compadecida”, do nosso saudoso e sábio Ariano Suassuna.
A escrita do Elias é proserosa. Isso
mesmo que você leu: proserosa. Não
foi nenhum erro de digitação ou descuido de revisão. Criei esta palavra me
utilizando do neologismo (acham que só o Caetano Veloso pode? Eu também quero,
ora!). Pro-se-ro-sa, registrem aí nos novos dicionários: significa uma prosa
prazerosa! Claro, porque, por vezes, o leitor de “Crônicas a Sangue Frio” quase
que se depara com o Elias pessoalmente na sua frente, falando cara a cara, só faltando
pedir pra descer uma cerveja estupidamente gelada pra molhar a garganta.
“Crônicas a Sangue Frio” é quase um livro confessional, à maneira de Santo
Agostinho, só que com muita andança por Belém, cerveja e muitos livros. Se nos
“Ensaios” de Montaigne, o autor nos
adverte: “Portanto, leitor, eu sou eu
próprio a matéria de meu livro”; no caso de “Crônicas”, Elias poderia parafrasear na entrada: Portanto, leitor,
eu, - e acrescentaria: - mais a vida boêmia, os tipos populares e os tipos notáveis,
as livrarias que fizeram história e a nossa grande Belém, somos todos a matéria
do meu livro. O poeta paulista Roberto Piva, num registro documental sobre sua
obra, diz logo no início: “eu só acredito
em poeta experimental que tem vida experimental” (Assombração Urbana com
Roberto Piva, 2004); eu que vos escrevo, como sou vivo pra cachorro, faço total
proveito das palavras do Piva e digo da minha maneira: não acredito em cronista
que não tenha uma vida boêmia. E Elias Ribeiro Pinto é também boemia, daquele
malandro que o Chico canta, o bom malandro, o malandro da nata da malandragem
de outros carnavais que não existe mais, Elias é o último desses moicanos, um
dos poucos sobreviventes, e isso respinga nas suas “Crônicas”. Esse texto, mais
do que uma crítica – até porque não me considero a altura de um crítico
literário como um Antônio Cândido ou um Benedito Nunes –, pretende, antes, ser
um convite, um convite ao livro de estreia de Elias, o livro “Crônicas”, e às suas crônicas.
“Considero o hábito da leitura (...) um vicio
comparável ao da bebida, do jogo, do tabaco ou das drogas. Pelo menos quanto à
dependência. Uma vez dependente, não há salvação. A luta é conseguir ficar cada
dia limpo das leituras e dos livros” (Crônicas a Sangue Frio, 2012, p. 98).