Capítulo
Dois
FLÁVIO EXCLAMOU BESTIFICADO:
– A-ca-ba-ram com o mun-do! – disse com as mãos na cabeça,
sem entender tal situação.
O rapaz, sem pensar duas vezes, saiu da casa para enxergar
melhor o mundo, seguido pela namorada em estado de confusão. Juntos,
constataram que o planeta terra havia sido desgraçadamente varrido. Até onde a
vista pudesse alcançar, tudo não passava de um grande nada, um deserto
inabitável. Parecia que uma gigantesca vassoura dos deuses havia varrido tudo e
a todos, menos o casal. Fernanda chegou a correr para trás da casa onde
moravam, depois correu para o lado e nada. Aquele mesmo cenário imperava por
todos os cantos. O céu parecia uma fotografia antiga, meio preto e branco. Se
ao menos tivessem destroços por todos os lados, carros destruídos, prédios
derrubados, o casal de namorados poderia até encontrar rastros do que deveria
ter acontecido. Mas nem isso. O
mundo naquele momento não passava de um oceano desértico, acinzentado e
recoberto por poeira.
– Flávio, o que fizeram com o mundo? – perguntou Fernanda
atordoada. – Cadê todas as coisas que sempre estavam aqui, os carros, as casas,
os nossos vizinhos?
A lógica perdeu espaço diante do planeta terra vazio de
vida e cheio de um nada acinzentado. Que teoria filosófica ou científica
explicaria aquilo?
Flávio, num arrepio de esperança, até chegou a fechar bem
os olhos torcendo para que tudo não passasse de um sonho. Abriu novamente os
olhos. Não era um sonho. Ou melhor, era. Era um pesadelo, mas real,
vivo, intenso, gritante, cortante e duramente angustiante.
Quem poderia explicar por que o mundo estava daquele jeito?
Onde se encontravam, agora, os profetas, aqueles que gritavam a plenos pulmões
por todas as ruas da cidade que o fim do mundo estava próximo? “Irmãos, o fim
se aproxima!”, eles sentenciavam histericamente. Onde estavam os anunciadores
dos novos tempos, dos últimos tempos, dos piores tempos para todos aqueles que
não se convertessem à verdade sagrada, absoluta e dogmática? Deus, então,
viera buscar seu povo escolhido? Sobrara apenas o casal jovem de namorados.
Viria o deus buscá-los na próxima viagem? Será mesmo que todos – todos! – foram
salvos, menos o casal de namorados? E olha que não fora nem uma nem duas vezes
que as Testemunhas de Jeová haviam lhe convidado para visitarem a sua igreja.
Por que não aceitaram? Ao menos estariam salvos naquele instante. Mas os dois
sempre foram éticos demais para acreditarem em algo só para não serem mandados
ao inferno ou só para terem as almas salvas no paraíso.
Ou então deveria ter sido uma invasão alienígena. Uma
visitinha básica dos amigos de outros planetas. Raptaram a humanidade com o
objetivo de fazer testes e mais testes e mais testes. Deixaram tudo bagunçado,
afinal os seres humanos não queriam cooperar. Se não foram por bem, com
certeza, levando em consideração a situação atual do planeta, foram levados por
mal, contra as suas vontades.
– Flávio! – exclamou Fernanda.
Ele olhou para os olhos dela. Olhos de pavor.
– Me bate, Flávio!
– O que é isso, Fê? – disse colocando as mãos na cabeça,
talvez com receio de perder o pouco da sanidade que ainda preservava.
– Me bate!
– Claro que não!
– Já disse, me bate!
– Claro que nã... – antes que terminasse a frase, levou um
profundo tabefe na cara.
Daria para ouvir do outro lado da rua, se existisse rua e
se houvesse algum ser humano ali por perto. Flávio se desequilibrou e caiu de
joelhos no chão. Onde estava todo mundo para presenciar aquela cena
desesperadora e meio patética dos dois? Ninguém. Ressoava somente a canção do
silêncio cor de cinza.
Fernanda e Flávio levavam uma vida tranquila a dois. Viviam
quase que independentemente do resto do mundo, não fosse o fato de trabalharem
com pessoas. Talvez somente por isso é que ainda mantinham algum contato humano
que não fosse entre eles próprios. Fernanda assistia, todos os dias, o
desenrolar da política de seu país e, baseada nas teorias filosóficas e
sociológicas que aprendera na faculdade de Ciências Sociais, trabalhava
metodicamente durante a semana na escrita de artigos para serem publicados de
quinze em quinze dias na revista “Pólis Pós-Moderna”; enquanto que seu
namorado Flávio, todos os dias, caminhava metodicamente até a Escola Pública de
Ensino Fundamental e Médio Monteiro Lobato, não muito longe da casa onde
moravam, para dar aulas de inglês. A vida a dois, todos os dias, era
metodicamente muito bem planejada, pautada sempre na lógica. Mas isso era
antes. Hoje, toda aquela racionalidade havia caído por terra. Porque,
simplesmente, não existia razão que pudesse explicar o estado em que o planeta
terra se encontrava. O mundo perdera sua cor na noite anterior.
Flávio colocou a mão no lado do rosto que recebeu a
bofetada. Rapidamente Fernanda abraçou o namorado no chão e implorou por
perdão, afinal de contas, fizera aquilo de cabeça quente, sem pensar. Os dois se
levantaram e Flávio guardou a namorada nos braços, num gesto direto de afago,
dizendo:
– Eu sei, meu amor – disse o rapaz em tom de compreensão. –
Eu sei que tudo está confuso na sua cabeça. Na minha também. Será que isso tudo
é real? Na noite passada não ouvi nenhum barulho, nada que me fizesse suspeitar
de que o mundo tinha virado de cabeça pra baixo.
– Eu dormi feito uma pedra, Flávio. Não entendo por que as
coisas estão assim.
Nesse instante, Fernanda pensou rápido: para tentar
desvendar todo aquele mistério surrealista, a garota correu de volta para
dentro da casa e ligou a televisão pequena da sala.
“... Dessa forma, o presidente da república afirma que, do
jeito que as coisas estão, o melhor a se fazer será implantar uma monarquia
absolutista no país, onde ele próprio será, sem eleições, claro, o monarca
maior a comandar essa nação...”, um dos
canais abertos reproduzia uma notícia jornalística. Fernanda mudou para outro
canal. “... Você aí de casa vai colocar três ovos, leite, um pouco de
trigo com fermento, da mesma maneira que o nosso mestre cuca está fazendo...”.
Mudou para outro... “... A geração passada precisa entender que a
psicologia...”; depois para outro... “... queremos falar sobre...” e
para outro e para outro e para outro.
– Flávio, entra, vem cá ver.
Nada, nenhuma notícia sobre o que estava fora de casa.
Parecia que tinham se esquecido deles dois. A televisão estava com sua
programação normal, ninguém falava nada sobre o mundo devastado. Muito
estranho, no mínimo. A vida, além da deles dois, ainda existia, entretanto
apenas dentro da TV. Parecia que o casal de namorados estava numa espécie de
universo paralelo. Mas pensar isso seria absurdo, essas loucuras de teoria da
conspiração formuladas por adolescentes espinhentos sem vida sexual ativa.
De repente, soou no ar:
"E les po dem nos ou vir?".
Flávio e Fernanda se entreolharam, tomados por um espanto. Que diabo era aquilo que tinham ouvido?
"Fique ca lado! Es ta mos com pro blemas".
O casal se assustou. Aquilo eram vozes, quase que
sussurros. E não eram deles. Aquelas vozes estavam soando quase como um sopro
naquele deserto que outrora fora uma cidade razoavelmente decente de se viver.
De onde vinham aquelas vozes?
Num impulso, Flávio puxou Fernanda pelo braço, saindo da
casa com a namorada, dizendo:
– Se ficarmos aqui dentro, não vamos entender o que
realmente tá acontencendo lá fora! Vamos buscar respostas!
Foram correndo até a garagem da casa. Por sorte, o carro
ainda estava lá, não sumira junto com o resto do mundo. A namorada voltou na
cozinha da casa, onde tinham iniciado o dia com um ótimo café da manhã. Voltou
para pegar as chaves do carro. Abriram rapidamente as portas, entraram. Somente
Fernanda tinha carteira de motorista. Pisou no acelerador sem piedade, afinal
não tinha ninguém mesmo que pudesse ser atropelado. Foram os dois buscar por
alguma explicação no meio daquela planície infinita, acizentada e cheia de
poeira.
(Continua no próximo sábado, aqui no Blog Eu Vomitando)
O sumiço seria efeito Thanos "o que fizeram com o mundo", rsrs, a sensação de perda é devastadora no ser humano, e o grito do silêncio deve ser ensurdecedor e desesperador. Para angustiar ainda mais o casal, tem as vozes do "além" ou o além da consciência?
ResponderExcluirMuito bem colocado, mestre (risos)!
ExcluirRealmente o sentimento de perda é devastador para qualquer ser humano, porque é tão mais cômodo quando temos o controle de toda a situação. Nossa finitude é frágil demais. Humanos, demasiados humanos, usando o título de uma das obras de Nietzsche.
Abraços!