sexta-feira, 22 de março de 2019

Assim Será O Amor No Fim do Mundo (Capítulo Um)


Capítulo Um






FLÁVIO GERALMENTE ACORDAVA PRIMEIRO QUE SUA NAMORADA. Não era tão cedo. Devia ser umas sete da manhã. Levantava-se e, religiosamente, a primeira coisa que fazia era ir ao banheiro mijar. Como todos os dias, deixava pra tomar banho e escovar os dentes depois do café da manhã.

A vida a dois era boa. Flávio nunca entendeu por que algumas pessoas perdiam tempo com baladas, festas, se esfregando umas nas outras, enchendo a barriga de saliva – dos beijos que cheiravam a sexo explícito. Flávio tinha vinte e cinco anos. Não era velho, porém preferia o repouso e a serenidade do seu namoro com Fernanda a ter que gastar o seu suado dinheiro com bebidas alcoólicas que depois de poucos minutos iriam ser despejadas pela urina nas ruas ou em privadas fedorentas.

Os dois brigavam? Sim, claro, uma vez ou outra, mas nada que fosse motivo para separação. Aprenderam rápido que a vida dividida deve ter a razão como guia. Sabiam que as brigas nunca levavam a lugar algum, portanto, o mais viável, pela lógica, era evitá-las. Prezavam, digamos, pela “coerência conjugal”, como eles mesmos metodicamente falavam.

– Fê, o café já tá pronto – avisou Flávio chamando sua namorada, quase esposa, pelo apelido carinhoso que já usava há cinco anos de relacionamento.

Nos primeiros dois anos de namoro, Flávio morava com sua mãe solteira e Fernanda com o pai e a mãe casados. O casal jovem se conhecera num supermercado popular da cidade, numa situação nada agradável para Fernanda. A garota havia sido assaltada logo na saída das compras, estava desesperada, atordoada. Era a primeira vez que passava por uma situação daquelas. Flávio, que estava chegando minutos depois do ocorrido, percebeu a garota angustiada no estacionamento da saída do supermercado e resolvera, então, ajudar, acalmando-a e levando a jovem até a delegacia mais próxima para fazer o boletim de ocorrência. A partir daí, travaram uma amizade. Depois de meio ano, decididos, começaram a namorar.

– Caramba! – exclamou Fernanda surpresa, que acabara de entrar na cozinha. – Como você sabia que eu tava a fim de comer esse pãozinho maravilhoso que só você sabe fazer? – Deu um abraço bem forte e carinhoso no namorado que às vezes dava o ar da graça de ser um pouco romântico à moda antiga.

Tomaram café juntos, como todos os dias.

E, como todos os dias, Flávio saiu primeiro da mesa. Fernanda trabalhava todos os dias em casa, escrevendo para uma revista que publicava seus artigos sobre política de quinze em quize dias, enquanto que o namorado, professor de inglês, precisava se adiantar para não chegar atrasado ao seu trabalho de todos os dias. Então, correu para o banheiro, escovou rapidamente os dentes debaixo do banho frio daquela água que jorrava do chuveiro sem piedade, como todos os dias. Enxugou-se nas pressas, puxou a primeira calça que viu na frente, roubou do guarda-roupa a sua camisa preferida – que estampava descaradamente o nome e a imagem do seu filme predileto, Blade Runner: o caçador de andróides – e beijou sua namorada na boca antes de abrir a porta de casa para ganhar o vasto mundo, como todos os dias.

Abriu a porta. Mas, diferentemente de todos os dias, Flávio ficou paralisado diante do mundo que agora se apresentava para ele. Pasmado, com bastante dificuldade, gaguejando, conseguiu exclamar:

– A... am... amor... – de olhos arregalados, fez uma pausa dramática. – Acabaram com o mundo!

O planeta terra estava devastado. Não existiam mais casas, nem prédios, nem as poucas árvores; nenhum carro, nenhuma moto, nenhuma bicicleta, nenhum ônibus; calçadas e asfaltos não existiam mais. O chão estava em estado de pura terra batida. Era como se o mais surrealista dos pintores tivesse derramado de propósito pura tinta cinza em cima de todo aquele quadro. O mundo agora estava infinitamente cinzento e o chão recoberto por poeira. E não havia sequer uma alma viva para contar a eles o que acontecera na noite anterior.

 (Continua no próximo sábado, aqui no blog)


4 comentários:

  1. acredito que criar seja o tempo todo uma tentativa de diálogo entre o novo e o velho...de um condenado à dependência da Terra, que tenta escapar pela arte.

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    1. Fico imensamente encantado com tais palavras.
      Alcides, agradeço pela atenção, por você ter tido coragem de ler a minh pequena arte. Saiba que aprecio imensamente a tua arte.
      Abraços!
      Os próximos capítulos estão a caminho!

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  2. Meu amigo, gostei da criação, ficção e realidade, quantos de nós acordamos e nos deparamos em um mundo sem chão. Não encontrar o mundo tal como o texto sugere, me remete ao poema "José" de Carlos Drummond de Andrade. abraços Rosiel

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    1. Rosiel, confesso que em nenhum momento da criação dessa história me veio o "José" de Drummond. Sabiamente me fizeste lembrar da situação terrível evocada pelo poema. Muito parecido também com a Metamorfose de Kafka: certa manhã acordou de sonhos intranquilos metamorfoseado num inseto monstruoso. Talvez nossa vida seja assim todos os dias, o mundo cada vez mais devastado, fora de lugar. Uns percebem, outros nem se dão conta. Por isso, aproveito a ocasião: POR MAIS FILOSOFIA NO MUNDO!
      Abraços!

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