Capítulo Um
FLÁVIO GERALMENTE ACORDAVA PRIMEIRO QUE SUA NAMORADA. Não era tão cedo. Devia ser umas
sete da manhã. Levantava-se e, religiosamente, a primeira coisa que fazia era ir
ao banheiro mijar. Como todos os dias, deixava pra tomar banho e escovar os dentes
depois do café da manhã.
A vida a
dois era boa. Flávio nunca entendeu por que algumas pessoas perdiam tempo com
baladas, festas, se esfregando umas nas outras, enchendo a barriga de saliva –
dos beijos que cheiravam a sexo explícito. Flávio tinha vinte e cinco anos. Não
era velho, porém preferia o repouso e a serenidade do seu namoro com Fernanda a
ter que gastar o seu suado dinheiro com bebidas alcoólicas que depois de poucos
minutos iriam ser despejadas pela urina nas ruas ou em privadas fedorentas.
Os dois
brigavam? Sim, claro, uma vez ou outra, mas nada que fosse motivo para
separação. Aprenderam rápido que a vida dividida deve ter a razão como guia. Sabiam
que as brigas nunca levavam a lugar algum, portanto, o mais viável, pela
lógica, era evitá-las. Prezavam, digamos, pela “coerência conjugal”, como eles
mesmos metodicamente falavam.
– Fê, o
café já tá pronto – avisou Flávio chamando sua namorada, quase esposa, pelo
apelido carinhoso que já usava há cinco anos de relacionamento.
Nos
primeiros dois anos de namoro, Flávio morava com sua mãe solteira e Fernanda
com o pai e a mãe casados. O casal jovem se conhecera num
supermercado popular da cidade, numa situação nada agradável para Fernanda. A
garota havia sido assaltada logo na saída das compras, estava desesperada,
atordoada. Era a primeira vez que passava por uma situação daquelas. Flávio,
que estava chegando minutos depois do ocorrido, percebeu a garota angustiada no
estacionamento da saída do supermercado e resolvera, então, ajudar, acalmando-a
e levando a jovem até a delegacia mais próxima para fazer o boletim de
ocorrência. A partir daí, travaram uma amizade. Depois de meio ano, decididos,
começaram a namorar.
– Caramba!
– exclamou Fernanda surpresa, que acabara de entrar na cozinha. – Como você
sabia que eu tava a fim de comer esse pãozinho maravilhoso que só você sabe fazer? – Deu um abraço bem
forte e carinhoso no namorado que às vezes dava o ar da graça de ser um pouco
romântico à moda antiga.
Tomaram
café juntos, como todos os dias.
E, como
todos os dias, Flávio saiu primeiro da mesa. Fernanda trabalhava todos os dias em casa, escrevendo para uma revista que publicava seus artigos sobre política de quinze em quize dias, enquanto que o namorado, professor de inglês, precisava se adiantar para não
chegar atrasado ao seu trabalho de todos os dias. Então, correu para o
banheiro, escovou rapidamente os dentes debaixo do banho frio daquela água que
jorrava do chuveiro sem piedade, como todos os dias. Enxugou-se nas pressas,
puxou a primeira calça que viu na frente, roubou do guarda-roupa a sua camisa
preferida – que estampava descaradamente o nome e a imagem do seu filme
predileto, Blade Runner: o caçador de
andróides – e beijou sua namorada na boca antes de abrir a porta de casa
para ganhar o vasto mundo, como todos os dias.
Abriu a
porta. Mas, diferentemente de todos os dias, Flávio ficou paralisado diante do
mundo que agora se apresentava para ele. Pasmado, com bastante dificuldade,
gaguejando, conseguiu exclamar:
– A... am...
amor... – de olhos arregalados, fez uma pausa dramática. – Acabaram com o
mundo!
O planeta
terra estava devastado. Não existiam mais casas, nem prédios, nem as poucas
árvores; nenhum carro, nenhuma moto, nenhuma bicicleta, nenhum ônibus; calçadas
e asfaltos não existiam mais. O chão estava em estado de pura terra batida. Era como se o mais surrealista dos pintores
tivesse derramado de propósito pura tinta cinza em cima de todo aquele quadro.
O mundo agora estava infinitamente cinzento e o chão recoberto por poeira. E não havia sequer
uma alma viva para contar a eles o que acontecera na noite anterior.
(Continua no
próximo sábado, aqui no blog)
acredito que criar seja o tempo todo uma tentativa de diálogo entre o novo e o velho...de um condenado à dependência da Terra, que tenta escapar pela arte.
ResponderExcluirFico imensamente encantado com tais palavras.
ExcluirAlcides, agradeço pela atenção, por você ter tido coragem de ler a minh pequena arte. Saiba que aprecio imensamente a tua arte.
Abraços!
Os próximos capítulos estão a caminho!
Meu amigo, gostei da criação, ficção e realidade, quantos de nós acordamos e nos deparamos em um mundo sem chão. Não encontrar o mundo tal como o texto sugere, me remete ao poema "José" de Carlos Drummond de Andrade. abraços Rosiel
ResponderExcluirRosiel, confesso que em nenhum momento da criação dessa história me veio o "José" de Drummond. Sabiamente me fizeste lembrar da situação terrível evocada pelo poema. Muito parecido também com a Metamorfose de Kafka: certa manhã acordou de sonhos intranquilos metamorfoseado num inseto monstruoso. Talvez nossa vida seja assim todos os dias, o mundo cada vez mais devastado, fora de lugar. Uns percebem, outros nem se dão conta. Por isso, aproveito a ocasião: POR MAIS FILOSOFIA NO MUNDO!
ExcluirAbraços!