quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A Água Viva Chamada Clarice

"Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração"
(Clarice - Caetano Veloso)
Falar de Clarice Lispector é difícil, ela não cabe em rótulos. É uma escritora que não foi feita para todos os leitores. Sua obra é de uma introspecção tamanha que já foi considerada uma escritora hermética, de difícil compreensão. Clarice cria uma atmosfera quase que metafísica em sua obra no sentido de que não é uma autora que trata de fatos históricos, não trata de uma cronologia linear de sucessão de fatos obrigatoriamente ordenados, onde uma tal desordenação provocaria o desentendimento de sua obra. Clarice é uma autora que está além do entendimento.

"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada" (LISPECTOR, Clarice. Água Viva. São Paulo: Círculo do Livro, 1973, página 23).

A obra de Clarice Lispector não se compreende: lê-se.
Numa das minhas andanças pelas bibliotecas da vida, encontrei uma que me surpreendeu fortemente. Nela tinham obras muito difíceis de serem encontradas em livrarias tanto de usados quanto de novos. Romance, filosofia, sociologia, poesia, praticamente tudo que é de meu interesse tinha lá. Essa é uma daquelas bibliotecas que você se torna frequentador assíduo sempre que arruma um tempo. Uma biblioteca rica! Nela, andando por entre as estantes, encontrei inúmeros livros de uma autora que, confesso, nunca tive coragem de ler. A palavra é essa mesma: coragem. Nunca ousei ler Clarice Lispector por falta de coragem. Seu nome sempre me despertou profundo interesse, mas, ao mesmo tempo, medo de lê-la. As edições presentes nessa biblioteca eram muito bem feitas, esteticamente bonitas, e conseguiram fazer com que eu ficasse só naquela prateleira, folheando aquelas densas páginas lispectorianas. Até que li um título que me fez lembrar de uma música de Raul Seixas, Água Viva. Achei interessante um livro se chamar Água Viva. Achei poético. Naquele instante, naquela estante, abri o livro e juro que desde que comecei a ler a primeira página não consegui mais parar! Dei um jeito de levar o livro pra casa, não roubei, fiz seu empréstimo. Fazia muito tempo que não lia tão dedicadamente um livro como li Água Viva. Fazia muito tempo mesmo que não me envolvia de corpo e alma em uma obra. Aquele livro me engoliu, do início ao fim. E a partir dali, tornei-me um leitor de Clarice Lispector.
Água Viva de Clarice é uma narrativa poética, toda feita em primeira pessoa. Não encontramos diálogo. É um monólogo. Quem sabe um diálogo da personagem consigo mesma? Não é de se descartar tal possibilidade. É uma narrativa que não segue roteiros. Uma narrativa que segue a ordem da espontaneidade: “Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo” (LISPECTOR, Clarice. Água Viva. São Paulo: Círculo do Livro, 1973, páginas 86, 87).

É um romance que possui uma narrativa poética que nos mostra uma pintora. Qual seu nome? Não nos e dado o conhecimento. Entretanto, essa pintora se põe a trabalhar, nos instantes em que se sucedem, não com pincéis e tintas, mas com palavras e papéis. No decorrer do livro, ela vai falando sobre quase tudo que o leitor imaginar, sobre suas vivências, seus pensamentos, suas impressões, suas crises, sua insônia - cuidado, insônia contagiante -, seus sentimentos: “Esta é a vida vista pela vida” (idem, página 13).
Ela (ela quem? a personagem pintora ou Clarice Lispector? O fato é que criador e criatura se confundem e não se sabe quem é quem) escreve o livro todo sem se deter num momento, ela pinta nas letras os instantes que se sucedem incessantemente. O livro é quase que um louvor ao instante: “Isto não é história porque não conheço história assim, mas só sei ir dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos fugitivos que se veem da janela do trem” (idem, página 87). Ela escreve para alguém, no entanto alguém que nunca nos é revelado. Assim, ela diz para seu possível remetente: “Também tenho que te escrever porque tua seara é a das palavras discursivas e não o direto das minhas pinturas” (páginas 10, 11); “Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante” (página 13); “Tente entender o que pinto e o que escrevo agora. Vou explicar: na pintura como na escritura procuro ver estritamente no momento em que vejo” (página 90).

O livro todo é uma viva espontaneidade que salta aos olhos, onde a vida vai correndo em cada letra, em cada palavra, em cada frase, tudo vai correndo e o leitor se envolve de uma maneira ofegante, o leitor fica quase sem respirar de tanto correr junto à personagem que idolatra o que existe em cada instante e idolatra o eterno passar desses instantes. O próximo segundo é sempre imprevisível. O próximo momento é sempre indomável, ele escapa a qualquer planejamento, foge das mãos de quem tenta segurá-lo, e esse é o gostoso da vida, aí consiste a vida. O gostoso de ler Clarice Lispector é que sua narrativa é viva e flui como água.



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