Capítulo Quatro
MUITO ESTRANHO: DE ONDE VIRIAM
AQUELES SUSSURROS? Vozes quase incompreensíveis, ditas pausadamente, com
interferências cortando palavra por palavra, repetindo outras. Tudo muito
estranho. Mas, aliás, o que havia de normal naqueles dias? Tudo perdera o
sentido desde aquela manhã, aquela inesquecível manhã, que a princípio parecera
uma manhã como todas as outras, um dia como todos os outros.
– Flávio, só eu que tô ouvindo?
– As vozes? Não. Não é só você.
– Isso
tinha também perto de casa, lembra? Aconteceu quando a gente tava na frente de
casa! – Ela estava visivelmente confusa.
– São vozes humanas.... um pouco
difíceis de serem entendidas, mas são vozes humanas.
– Quando a gente tava perto de casa –
recordou Fernanda – parecia mais de uma pessoa falando. Tipo uma conversa. Não
consegui entender muito bem. Pareciam dialogar...
– Você lembra se falavam a nossa
língua? – indagou incisivo Flávio.
– Acho que falavam sim... – Fez esforço
para buscar na memória afetada pela tensão do momento. – Não consigo lembrar
com clareza.
– Mas – inquiriu mais uma vez o rapaz
– de onde estavam vindo essas vozes se não tinha ninguém perto da gente?
– Acho que... – Fernanda passou a mão
na testa com certo pesar, pensativa, retirando o suor que brotava devido aquela
tarde de sol escaldante. De repente, num gesto brusco, começou a remexer pelos
bolsos de sua calça jeans surrada pelos dias no fim do mundo desértico.
– O que você tá procurando? –
perguntou Flávio apreensivo.
– Cadê essa droga? – disse a namorada
em tom de angústia, como quem perde um diamante muito precioso.
– Fê... – chamou Flávio tentando
entender a afobação da garota. Soava estranho chamá-la assim, pelo apelido
carinhoso e íntimo, no meio de toda aquela situação adversa e indesejada que os
dois viviam. – O que você tá procurando?
– Tô procurando... – Batia com as
mãos pelas pernas da sua calça azul, vasculhando cada detalhe, e não terminava
a frase.
– Fernanda... – Flávio chamava já impaciente,
porque percebia que ela estava fora da realidade, centrada em procurar de forma
obsessiva por sabe lá o que, desesperada. – Calma, Fernanda, me diz o que você
quer... talvez eu possa te ajudar...
– Tô procurando pelo meu celular,
Flávio, o meu celular, cara! Será que... Será que essas vozes vêm do celular?
Alguém que também sobrou no meio de toda essa desgraça!
Nada. Nenhum celular em bolso algum. Não
viera do celular. Simplesmente pareciam mesmo vozes que brotavam no ar, no meio
do nada. Nada mais fazia sentido já fazia bastante tempo. Inclusive aquelas
vozes. Sons humanos emitidos aos ventos. Mas por quem? A lógica é coerente: causa
e efeito. Todo efeito é gerado por uma causa; toda causa antecede um efeito.
Fernanda e Flávio não conseguiam entender como a lógica era incompatível com aquele
novo estado em que o mundo se encontrava. O fim do mundo. Um mundo devastado e
que escapava a toda forma de compreendê-lo. Mundo sem sentido. Quase
inabitável. Se não fosse por eles, claro, vagando como duas almas penadas e
infortunadas, tentando sobreviver. Mas como sobreviver? Como sobreviver sem
compreender? Como se adaptar e conseguir passar por tudo aquilo de forma ilesa?
Durariam quanto tempo ainda?
– Não aguento mais. – Fernanda não
conseguiu mais se sustentar em pé e caiu.
Flávio se rendeu junto da namorada.
Os dois estendidos ao chão, derrotados.
A tarde já havia morrido na imensidão
empoeirada do planeta terra. O firmamento estava avermelhado como que do sangue
de um céu que partejava uma noite sublime, uma noite infinitamente abrilhantada
por estrelas fixadas em cada centímetro de céu, tudo ao som dos ventos
melódicos de um silêncio quase fúnebre, um silêncio de luto, não por aqueles
que se foram daqui para algum outro lugar desconhecido a olhos humanos, sem sequer
darem notícia, mas sim pelos dois minúsculos seres que mais pareciam gotas no
meio de todo o mar de areia, dois seres humanos que agora se arrastavam noite
adentro, deserto afora, mendigando por uma explicação que fizesse sentido e que
acalantasse serenamente suas almas derrotadas pelo infortúnio de um destino
irreversível.
***
Na manhã seguinte, gritos estridentes
tomaram conta dos quatro cantos daquele deserto empoeirado que o planeta terra
havia se transformado. Gritos que brotavam da dor mais profunda e indescritível
que já poderia ter existido. A dor da carne e a dor da alma. Flávio e Fernanda,
impulsionados irrefletidamente pelos golpes desfigurados em seus estômagos pelo
vazio agudo da fome que os massacrava sem misericórdia, se lambiam, se mordiam,
se abocanhavam um ao outro. Retiravam-se lascas de pele, decepavam cabeças de
dedos, mastigavam orelhas e bebiam o sangue do outro. As necessidades básicas
fizeram com que os dois seres – considerados seres racionais por ciências e
filosofias – reduzissem suas personalidades a um ínfimo nível de meros animais
famintos e dispostos a cometer a desumanidade que fosse para se manterem vivos,
a vida pulsando no peito cheio de desespero. Era a prova de amor no fim do
mundo?
SÁBADO QUE VEM, AQUI NO BLOG, O ÚLTIMO CAPÍTULO DA MINISSÉRIE.
NÃO PERCA!
Interessantíssimo a incógnita que criaste: cadê o mundo? O amor termina no fim do mundo? O amor reinicia o mundo? Estou na expectativa, forte abraço.
ResponderExcluir