Capítulo Cinco – FINAL
DESERTO. TUDO NÃO PASSAVA DE UM GRANDE
DESERTO. A terra, que outrora fora morada das mais variadas pessoas – desde
crianças e adolescentes até adultos e velhos carcomidos –, agora não era nada mais que um deserto sem fim. Nenhum prédio, nenhuma casa, nenhum automóvel; nada de calçadas ou ruas asfaltadas.
Não existiam mais empregados, tampouco
patrões; não existiam padeiros, tampouco comedores de pão; não existiam mais
guardas, tampouco ladrões; nem existia mais dinheiro, tampouco lugar para se
gastar.
E les po
dem nos ou vir?
E les po dem nos
ou vir?
E les po
dem nos ou vir?
Eles po
dem nos ouvir?
Eles podem nos ouvir?
Aqueles sussurros!
Não havia mais religiosos, porque
também não havia mais religião; nenhum sino retumbante a badalar nas igrejas,
tampouco fiéis para rezar; não existiam mais alunos, porque não existiam mais
professores e nada mais havia para ser ensinado naqueles últimos dias.
Fique ca
lado! Es ta mos com pro blemas.
Fique ca lado!
Es ta mos com pro blemas.
Fique ca lado!
Esta mos com pro blemas.
Fique ca lado!
Estamos com pro blemas.
Fique
calado! Estamos com problemas.
Os sussurros outra vez.
Não existiam mais comandantes, tampouco
soldados nos quartéis para marchar; consequentemente não existiam mais inimigos
e nem guerras; não existiam mais pacientes, nem médicos e nenhuma doença mais
para curar.
Eles
es tão estão per per dendo o contro le.
Eles estão estão per
perdendo o controle.
Eles estãoestão
perperdendo o controle.
Eles esestão
perperdendo o controle.
Eles estão perdendo
o controle.
De onde viriam aqueles sussurros?
Deserto, um lugar inóspito.
Flávio e Fernanda estavam jogados sobre o chão empoeirado, haviam sido
vencidos pelos últimos dias. O fim do mundo havia lhes abatido de todas as
formas, tanto física quanto psicologicamente.
Fome, sede, dor, gritos, lágrimas.
Sangue escorrendo das orelhas de Flávio que haviam sido arrancadas pela
namorada; sangue escorrendo dos dedos do pé de Fernanda, abocanhados
todos pelo namorado. Haveria prova de amor maior do que a de doar o seu próprio
corpo para saciar a suprema fome do outro? Existia amor no fim do
mundo?
Deserto, lugar de provação, de teste, de tentações.
Caídos e vencidos, os dois namorados
avistaram, ao longe, uma sombra minúscula a se movimentar, vindo na direção
deles. Seria uma miragem àquela altura? A sombra aumentava quanto mais se
aproximava. Vinha vagando, quase se arrastando.
De repente, um estrondo quase
ensurdecedor ecoou pelo ar, semelhante a trovão. Os dois namorados, que mais
pareciam duas bestas feras estendidas ao chão, ainda que debilitados por terem
se canibalizado, conseguiram se espantar com aquele som estranho. De onde
viera tal barulho?
Logo em seguida, nos quatro cantos do deserto, soou uma
trombeta colossal, parecendo anunciar algo. O velho já se encontrava diante das duas únicas pessoas que pareciam ter sobrado no fim do mundo. Ele trajava um roupão todo negro mostrando apenas seu velho rosto sujo e barbudo, uma barba tão longa que chegava a tocar sua cintura. Suas mãos limpas saíram de
dentro do seu manto negro. Nesse mesmo instante, o céu, que antes era cinzento,
ficou agora surpreendentemente avermelhado. Labaredas flamejantes lambiam como
línguas de fogo todo aquele céu que um dia já fora azul e ensolarado. Logo
apareceu uma gigante abertura no firmamento. Num lampejo abrupto, um feixe de
luz amarela tocou as mãos abertas do velho barbudo fazendo surgir um grande
livro negro celestial, num ato solene de recebimento. Um supremo sopro, então,
fez com que as folhas daquele livro se virassem feito redemoinho no meio do
deserto. Até que, após alguns segundos, a ventania cessou deixando o livro perfeitamente aberto numa página dourada cintilante. O velho, naquele manto
negro, abriu a boca escondida no meio daquela enorme barba para ler com voz de
trovão o que ali estava escrito:
“Nesse tempo muitos serão escandalizados e trair-se-ão uns aos
outros, e aos outros se odiarão. E surgirão muitos falsos profetas, que
enganarão a muitos. E, por se multiplicar, o amor de muitos se esfriará.”
Por fim, o sujeito barbudo e
desconhecido fechou o livro e anunciou:
– Somente é capaz de amar aquele que puder
contar o infinito nos dedos. Decifra-me ou eu te devoro!
Fernanda e Flávio ficaram perplexos.
Até que um sussurro no meio do nada bradou:
– Podem desligar as
máquinas!
O velho abriu a boca e
inexplicavelmente ela cresceu tanto que conseguiu arrastar para dentro de si
toda a realidade, tudo o que restara do mundo. A boca se tornou monstruosa e
infinita e engoliu impiedosamente Fernanda, Flávio e todo o universo. Tudo
escureceu. Perderam a consciência dentro daquele agora estonteante
buraco negro.
***
Acordaram um pouco atordoados, numa
cama de aço localizada no meio de uma sala metálica, bastante refrigerada, mas
totalmente desconhecida. No meio do teto, uma lâmpada enorme clareava com
alguma dificuldade o recinto. Ao redor deles havia uma multidão de pessoas com
máscaras cirúrgicas negras e batas da mesma cor, parecendo enfermeiros,
analisando atentamente o casal acordar aos poucos.
Flávio ficou impressionado quando, passando
as mãos pelo corpo, constatou que estava intacto, sem ferida alguma, com as
orelhas no mesmo lugar de sempre. Virou para Fernanda e percebeu que ela também
estava intocável, totalmente ilesa. De fato, não havia sequer rastro algum de
sangue nos dois. Porém, com mais atenção, Flávio percebeu que havia algo muito
esquisito na sua namorada: em sua cabeça estavam conectados dois cabos espessos
de aço reluzente, um de cada lado. Fernanda reparou o susto do namorado. Passou
com certa pressa as mãos pela cabeça. Olhou para a cabeça de Flávio e isso foi
o bastante para que ele entendesse que também tinha cabos de aço conectados em
seu crânio.
– Peço que não fiquem assustadas, doces
crianças – disse alguém com voz muito grave surgindo da multidão. Flávio
reconheceu no mesmo instante: era o mesmo tom de voz de um dos sussurros que
eles ouviam. Um homem alto e careca, cheio de rugas, com óculos escuros
escondendo os olhos, metido num roupão todo negro que batia nas suas botas de
couro, surgiu do meio da multidão: – Tudo tem o seu tempo certo. – Aquele homem
era o dono da voz.
– Eu explico ou você explica? – quis
saber outro sujeito que abria caminho no meio daquele emaranhado de pessoas.
Era um homem muito gordo, cabeludo, vestido também num roupão negro e de óculos
escuros na cara.
Flávio berrou:
– Eram vocês! Com certeza eram vocês
que sussurravam no meio do deserto!
Nessa altura, Fernanda já estava
desesperada:
– Que merda toda é essa? Um grande
teatro pra todo mundo rir da gente?
– Sobre as vozes que vocês ouviram
quando estavam na simulação, foram falhas em nossa máquina – esclareceu o
sujeito gordo, ajeitando seu cabelo longo e ondulado que batia na cintura. –
Estamos nos esforçando para aperfeiçoar cada vez mais nosso sistema. Pedimos
perdão.
– Você disse “simulação”? – interrogou
Fernanda de maneira cortante, com os olhos arregalados de surpresa.
– Há algum tempo atrás, mais
precisamente dois anos, vocês entraram em contato conosco para solicitar nossos
serviços. Concordaram com nosso método e apenas cumprimos nosso papel.
– Serviços? Método? Como assim, que
tipo de “papel” vocês cumpriram?
– Somos a Simulation Corporation.
Trabalhamos com a criação de realidades ilusórias, mas tudo, claro, por um
nobre motivo: pôr a prova um relacionamento recente. Fazemos isso a mais ou
menos dez anos. Digamos que nosso trabalho é bastante sigiloso. O governo não
sabe de nada e é preferível que nunca saiba. Atuamos na clandestinidade.
– Basicamente o que ele quis dizer é
que simulamos uma situação totalmente absurda, de acordo com a realidade
ilusória que nossos clientes pedem – complementou o sujeito cabeludo de
proporções largas, entregando nas mãos de Flávio um documento em que constava a
assinatura do casal no fim do papel. – No caso de vocês, senhor Flávio e
senhora Fernanda, vieram a nosso encontro numa sexta-feira ensolarada,
radiantes de amor, nos informando que haviam sido amigos e que essa doce
amizade evoluiu para algo mais forte, uma “intensa paixão”, como assim
denominaram. Queriam muito saber se esse sentimento resistiria aos anos de
convivência. Nos pagaram relativamente bem pedindo que simulássemos uma
realidade onde o mundo estivesse devastado. E como podem observar – apontou
para o documento –, autorizaram formalmente todo nosso procedimento. É natural
que vocês não lembrem – continuou – porque sempre usamos o amnetídoto,
uma substância química que serve para apagar da memória qualquer informação
sobre nossa corporação. Apenas esperamos o tempo certo chegar para trabalhar.
Com uma chave mestra, entramos na casa de nossos clientes. Deixamos vocês em
estado de sono induzido por cinco horas, tempo suficiente para que pudéssemos
trazer em segurança seus corpos até nossa sala de simulação.
– Que troço é esse nas nossas cabeças?
– questionou Flávio incomodado.
– Esses cabos são o que chamamos
de tentáculos virtuais entorpecentes. Eles mantêm o
cérebro em estado de inconsciência, abrindo espaço para que possamos criar a
realidade simulada em suas mentalidades.
– E qual realidade simulada nós
escolhemos? – quis saber Flávio.
– A categoria “fim do mundo”. O amor no
fim do mundo.
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– FIM DA MINISSÉRIE –
Texto e Arte: Matheus Caio Queiroz
Obrigado a
todos que chegaram até aqui! Sintam-se abraçados!
Dedico essa história a um mestre da ficção científica, um filósofo da
literatura:
Philip K. Dick.
Show de bola, esperava algo tipo abduções, o juízo final, tudo era um sonho... e por ai vai. Gostei. Espero a próxima. Abraços
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