sábado, 20 de abril de 2019

Assim Será O Amor No Fim do Mundo (Capítulo Cinco)

Capítulo Cinco – FINAL




DESERTO. TUDO NÃO PASSAVA DE UM GRANDE DESERTO. A terra, que outrora fora morada das mais variadas pessoas – desde crianças e adolescentes até adultos e velhos carcomidos –, agora não era nada mais que um deserto sem fim. Nenhum prédio, nenhuma casa, nenhum automóvel; nada de calçadas ou ruas asfaltadas.

Não existiam mais empregados, tampouco patrões; não existiam padeiros, tampouco comedores de pão; não existiam mais guardas, tampouco ladrões; nem existia mais dinheiro, tampouco lugar para se gastar.


E les po dem     nos ou vir?
E les po dem    nos ou vir?
E les po dem   nos ou vir?
Eles po dem  nos ouvir?
Eles podem nos ouvir?


Aqueles sussurros!

Não havia mais religiosos, porque também não havia mais religião; nenhum sino retumbante a badalar nas igrejas, tampouco fiéis para rezar; não existiam mais alunos, porque não existiam mais professores e nada mais havia para ser ensinado naqueles últimos dias.


Fique ca  lado!    Es ta mos com pro     blemas.
Fique ca  lado!   Es ta mos com pro    blemas.
Fique ca lado!   Esta mos com pro   blemas.
Fique ca lado!  Estamos com pro  blemas.
Fique calado! Estamos com problemas.


Os sussurros outra vez.

Não existiam mais comandantes, tampouco soldados nos quartéis para marchar; consequentemente não existiam mais inimigos e nem guerras; não existiam mais pacientes, nem médicos e nenhuma doença mais para curar.


Eles es  tão estão per per dendo o contro le.
Eles estão estão per perdendo o controle.
Eles estãoestão perperdendo o controle.
Eles esestão  perperdendo o controle.
Eles estão perdendo o controle.


De onde viriam aqueles sussurros?

Deserto, um lugar inóspito. 

Flávio e Fernanda estavam jogados sobre o chão empoeirado, haviam sido vencidos pelos últimos dias. O fim do mundo havia lhes abatido de todas as formas, tanto física quanto psicologicamente. 

Fome, sede, dor, gritos, lágrimas. Sangue escorrendo das orelhas de Flávio que haviam sido arrancadas pela namorada; sangue escorrendo dos dedos do pé de Fernanda, abocanhados todos pelo namorado. Haveria prova de amor maior do que a de doar o seu próprio corpo para saciar a suprema fome do outro?  Existia amor no fim do mundo? 

Deserto, lugar de provação, de teste, de tentações.


Caídos e vencidos, os dois namorados avistaram, ao longe, uma sombra minúscula a se movimentar, vindo na direção deles. Seria uma miragem àquela altura? A sombra aumentava quanto mais se aproximava. Vinha vagando, quase se arrastando. 

De repente, um estrondo quase ensurdecedor ecoou pelo ar, semelhante a trovão. Os dois namorados, que mais pareciam duas bestas feras estendidas ao chão, ainda que debilitados por terem se canibalizado, conseguiram se espantar com aquele som estranho. De onde viera tal barulho? 

Logo em seguida, nos quatro cantos do deserto, soou uma trombeta colossal, parecendo anunciar algo. O velho já se encontrava diante das duas únicas pessoas que pareciam ter sobrado no fim do mundo.  Ele trajava um roupão todo negro mostrando apenas seu velho rosto sujo e barbudo, uma barba tão longa que chegava a tocar sua cintura. Suas mãos limpas saíram de dentro do seu manto negro. Nesse mesmo instante, o céu, que antes era cinzento, ficou agora surpreendentemente avermelhado. Labaredas flamejantes lambiam como línguas de fogo todo aquele céu que um dia já fora azul e ensolarado. Logo apareceu uma gigante abertura no firmamento. Num lampejo abrupto, um feixe de luz amarela tocou as mãos abertas do velho barbudo fazendo surgir um grande livro negro celestial, num ato solene de recebimento. Um supremo sopro, então, fez com que as folhas daquele livro se virassem feito redemoinho no meio do deserto. Até que, após alguns segundos, a ventania cessou deixando o livro perfeitamente aberto numa página dourada cintilante. O velho, naquele manto negro, abriu a boca escondida no meio daquela enorme barba para ler com voz de trovão o que ali estava escrito:


 “Nesse tempo muitos serão escandalizados e trair-se-ão uns aos outros, e aos outros se odiarão. E surgirão muitos falsos profetas, que enganarão a muitos. E, por se multiplicar, o amor de muitos se esfriará.”



Por fim, o sujeito barbudo e desconhecido fechou o livro e anunciou:

– Somente é capaz de amar aquele que puder contar o infinito nos dedos. Decifra-me ou eu te devoro!

Fernanda e Flávio ficaram perplexos. Até que um sussurro no meio do nada bradou:

– Podem desligar as máquinas!

O velho abriu a boca e inexplicavelmente ela cresceu tanto que conseguiu arrastar para dentro de si toda a  realidade, tudo o que restara do mundo. A boca se tornou monstruosa e infinita e engoliu impiedosamente Fernanda, Flávio e todo o universo. Tudo escureceu. Perderam a consciência dentro daquele agora estonteante buraco negro.




***



Acordaram um pouco atordoados, numa cama de aço localizada no meio de uma sala metálica, bastante refrigerada, mas totalmente desconhecida. No meio do teto, uma lâmpada enorme clareava com alguma dificuldade o recinto. Ao redor deles havia uma multidão de pessoas com máscaras cirúrgicas negras e batas da mesma cor, parecendo enfermeiros, analisando atentamente o casal acordar aos poucos.

Flávio ficou impressionado quando, passando as mãos pelo corpo, constatou que estava intacto, sem ferida alguma, com as orelhas no mesmo lugar de sempre. Virou para Fernanda e percebeu que ela também estava intocável, totalmente ilesa. De fato, não havia sequer rastro algum de sangue nos dois. Porém, com mais atenção, Flávio percebeu que havia algo muito esquisito na sua namorada: em sua cabeça estavam conectados dois cabos espessos de aço reluzente, um de cada lado. Fernanda reparou o susto do namorado. Passou com certa pressa as mãos pela cabeça. Olhou para a cabeça de Flávio e isso foi o bastante para que ele entendesse que também tinha cabos de aço conectados em seu crânio.


– Peço que não fiquem assustadas, doces crianças – disse alguém com voz muito grave surgindo da multidão. Flávio reconheceu no mesmo instante: era o mesmo tom de voz de um dos sussurros que eles ouviam. Um homem alto e careca, cheio de rugas, com óculos escuros escondendo os olhos, metido num roupão todo negro que batia nas suas botas de couro, surgiu do meio da multidão: – Tudo tem o seu tempo certo. – Aquele homem era o dono da voz.

– Eu explico ou você explica? – quis saber outro sujeito que abria caminho no meio daquele emaranhado de pessoas. Era um homem muito gordo, cabeludo, vestido também num roupão negro e de óculos escuros na cara.

Flávio berrou:

– Eram vocês! Com certeza eram vocês que sussurravam no meio do deserto!

Nessa altura, Fernanda já estava desesperada:

– Que merda toda é essa? Um grande teatro pra todo mundo rir da gente?

– Sobre as vozes que vocês ouviram quando estavam na simulação, foram falhas em nossa máquina – esclareceu o sujeito gordo, ajeitando seu cabelo longo e ondulado que batia na cintura. – Estamos nos esforçando para aperfeiçoar cada vez mais nosso sistema. Pedimos perdão.

– Você disse “simulação”? – interrogou Fernanda de maneira cortante, com os olhos arregalados de surpresa.

– Há algum tempo atrás, mais precisamente dois anos, vocês entraram em contato conosco para solicitar nossos serviços. Concordaram com nosso método e apenas cumprimos nosso papel.

– Serviços? Método? Como assim, que tipo de “papel” vocês cumpriram?

– Somos a Simulation Corporation. Trabalhamos com a criação de realidades ilusórias, mas tudo, claro, por um nobre motivo: pôr a prova um relacionamento recente. Fazemos isso a mais ou menos dez anos. Digamos que nosso trabalho é bastante sigiloso. O governo não sabe de nada e é preferível que nunca saiba. Atuamos na clandestinidade.

– Basicamente o que ele quis dizer é que simulamos uma situação totalmente absurda, de acordo com a realidade ilusória que nossos clientes pedem – complementou o sujeito cabeludo de proporções largas, entregando nas mãos de Flávio um documento em que constava a assinatura do casal no fim do papel. – No caso de vocês, senhor Flávio e senhora Fernanda, vieram a nosso encontro numa sexta-feira ensolarada, radiantes de amor, nos informando que haviam sido amigos e que essa doce amizade evoluiu para algo mais forte, uma “intensa paixão”, como assim denominaram. Queriam muito saber se esse sentimento resistiria aos anos de convivência. Nos pagaram relativamente bem pedindo que simulássemos uma realidade onde o mundo estivesse devastado. E como podem observar – apontou para o documento –, autorizaram formalmente todo nosso procedimento. É natural que vocês não lembrem – continuou – porque sempre usamos o amnetídoto, uma substância química que serve para apagar da memória qualquer informação sobre nossa corporação. Apenas esperamos o tempo certo chegar para trabalhar. Com uma chave mestra, entramos na casa de nossos clientes. Deixamos vocês em estado de sono induzido por cinco horas, tempo suficiente para que pudéssemos trazer em segurança seus corpos até nossa sala de simulação.

– Que troço é esse nas nossas cabeças? – questionou Flávio incomodado.

– Esses cabos são o que chamamos de tentáculos virtuais entorpecentes. Eles mantêm o cérebro em estado de inconsciência, abrindo espaço para que possamos criar a realidade simulada em suas mentalidades.

– E qual realidade simulada nós escolhemos? – quis saber Flávio.

– A categoria “fim do mundo”. O amor no fim do mundo.



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– FIM DA MINISSÉRIE –
Texto e Arte: Matheus Caio Queiroz
Obrigado a todos que chegaram até aqui! Sintam-se abraçados!
Dedico essa história a um mestre da ficção científica, um filósofo da literatura:
Philip K. Dick.



Um comentário:

  1. Show de bola, esperava algo tipo abduções, o juízo final, tudo era um sonho... e por ai vai. Gostei. Espero a próxima. Abraços

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